Pingo - Carlos Drummond de Andrade

Edvard Munch - meninas na ponte - 1900

Pingo

Passava de vinte e duas horas quando o casal, que vinha do cinema, viu no meio-fio uma pequena forma escura, sobre a qual se debruçavam três moças.
A rua era tranquila, dessas que, mesmo desembocando em outras de agudo movimento, conservam sua placidez de província, alheias a toda emoção fora de pauta. Um ponto escuro na calçada, àquela hora de domingo, e a presença de moças em torno constituíam, pois, algo extraordinário, cuja importância o casal intuiu devidamente.
A pequena sombra movia-se. Era gente, mantinha a cabeça baixa, e suas mãos de menino tenro lidavam com um caixotinho que iam convertendo em gravetos. Parecia muito preocupado com a tarefa, de sorte que se manteve alheio à exposição feita por Iolanda, uma das moças, moradora na vizinhança.
Contava ela que, passando com duas amigas, também fora atraída pela coisinha movediça, no recanto menos iluminado da rua. Aproximando-se, pôs-se a observar o garoto, que tremia de frio mas não abandonava seu trabalho. Perguntou-lhe por que estava ali, já tarde, solito, desmanchando tabuinhas. E ele, que não se revelou amigo de conversa, a custo foi soltando sua explicação. O pai deixara-o naquele ponto, recomendando-lhe que não saísse do lugar. Tinha que fazer, e voltaria mais tarde para buscá-lo.
— E para onde foi seu pai?
— Eu é que sei?
— A que hora ficou de voltar?
— Não disse.
— E você vai ficar aí jogado até que ele volte?
— Fico fazendo lenha, uê.
A moça viu logo que a primeira providência era dar alimento e agasalho ao guri. Foi à casa, correndo, e trouxe um saco de biscoitos e um suéter tanto mais admirável quanto estava exatamente na medida, como tecido na previsão de uma criança de cinco anos, que fosse encontrada ao abandono, em noite de frio, na calçada.
Ele se deixou vestir, comeu com gosto e sem pressa. Mas, enquanto comia, procurava despregar mais uns pedacinhos de madeira.
A moça pensou em recolhê-lo em casa, à espera dos acontecimentos. Mas, se o pai viesse e não encontrasse o garoto no meio-fio, como restituí-lo? Nessa fiúza, estavam já havia uma hora. Por outro lado, era estranho aquele pai que assim deixava seu filho atirado na rua, ao relento, prometendo voltar mais tarde. Voltaria? Nunca mais, talvez.
Restava o recurso de tomar um carro e ir campear o barracão do menino, mas ele falava em sítios confusos, parecendo incapaz de localizá-los, ou pouco disposto a isso. Apelar para a delegacia ou o juízo de menores, a essa hora da noite, seria inútil. Na pior hipótese, a moça o guardaria em casa, e amanhã dá-se um jeito.
Examinava-se o que convinha fazer, em definitivo, quando outro grupo assomou à esquina, e, vendo o ajuntamento, dele se aproximou. Eram domésticas e operárias, que vinham rindo, satisfeitas com o domingo bem vivido, ou por coisa nenhuma. Curvando-se, reconheceram logo um irmão:
— É Pingo!
Era Pingo, amigo de todas, domiciliado na Praia do Pinto. Pai? Não tinha pai, pelo menos que alguma delas soubesse. A mãe era lavadeira, e Pingo gostava de sair à aventura, percorrendo mundo. Pingo é muito levado, tem imaginação.
Então a moça samaritana pediu às vizinhas de Pingo que o levassem. Elas concordaram, e Pingo não fez oposição. Queria apenas carregar as tabuinhas, com que faria em casa um grande fogo. Juntaram-se os fragmentos, e o bando partiu com a mesma algazarra feliz, comboiando Pingo de suéter novo, com as tabuinhas e os biscoitos remanescentes na mão.
— Você vai para o céu, Iolanda! — comentou o casal, a uma voz.
Mas Iolanda seguia com os olhos o grupo de raparigas, e preocupava-se. “Essa gente é meio maluca, sei lá se elas levam mesmo o garoto para casa?”

— Carlos Drummond de Andrade, no livro "Fala, amendoeira". São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
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