Estoriinha - João Guimarães Rosa

Vincent van Gogh  - 1890.
Estoriinha

Senão quando o vapor apitou e se avistou subindo o rio, aportava da Bahia cheio de pessoas.
Mearim viu-a e viu que de bem desde a adivinhara, estava para cada hora, por fatalidade de certeza. Sempre de qualquer escuro ou confuso ela se aproximava, apontada. Ele não estremeceu, provado para o silêncio e engasgo. Se entregava a afinal — ao de Deus a acontecer.
Dez passos, de lado, vigiava o Rijino também o vapor chegar, como os bichos olham o fogo. Rijino inteirado se quadrava, escondendo essas mãos de costas peludas. Mearim abaixou o rosto, com as ideias e culpas. Se dava de cansado, no impossível de se ser ciente das próprias ações.
Mesma, passageira, ela, alta, saia pintada, irrevogável, bonita como uma jiboia, os cabelos cor de égua preta.
Foi ver, foi visto. Não adiantava ter-se soltado, deciso deixando-a, não podia fugir para os fins da terra. Lá fez ela aceno, linda a mão de paixão ou ameaça, porquanto o vapor zoava, as fumaças se desenfeixando. Mearim não a abarcava — da memória, que é o que sem arrumo há, das muitas partes da alma — a cada sete batidas um coração discorda. Saudosa, por cheiro, tato, sabor, a voz às vezes branda, cochicho que na orelha dele virava cócegas, no fúrio aconchego. De repente, à má bruxa, a risada. O remorso tira essas roupagens. A gente tem de existir — por corpo, real, continuado — condenado. Ela chupava-lhe a respiração das ventas.
Ao Rijino, ele bem que citara avisos, quando retornando: — “Aqui, convém eu não ficar, o Sãofrancisco todo é alertamente...” — temia ela viesse, pleiteava vasto socorro. Rijino duro remordia, os dentes apertava, para nem no instante se envergonhar, o queixo afirmado; nem a gente tem poder de se afinar nas feições. — “Não pense na fulana...” só para a obediência. Rijino não dava conselhos, situado positivo.
Atual ali entanto ela estava, o vapor a entrar, recebido, por meio de zoeira, novidade, grita, deduzido dos extremos do Juazeiro. Seguro o Rijino pontual soubesse que um dia ela aparecia, havia de vir, com isso ele contava, que a desunião faz as enormes forças. Ela era a de não se desvanecer. Tudo — total, o balanço dos anos — tem horas se percebe, ligeiro demais, lumiado se concebe. Que era que o Rijino propositava? Ela se pertencia.
Mearim direto a ele, mano mais velho, viera, devido o que havido, depois, cheio de duvidar, doente de despojo. Mas no espaço das Três-Marias o Rijino mais contudo não laborava — de uns e outros ouviu; e, a ele mesmo, o reprovaram, lá, informadamente. Se mudara, o enganado Rijino, sempre por aí — em rumo que Mearim tomou — o rio, escorreito.
Topou-o no porto. Subido da surpresa, frente a ele se propôs, faltoso e irmão, cara à cara: — “Me mate. Errei, enxerguei, me puni. Seja pelo leal, que não fui...” — e esperou o novo. Sem em-de sentenciar, o Rijino fechou as mãos, em par, socava o ar, feito o boneco tãomente. Declarou, custoso: — “Nossa mãe essas mais lágrimas não houvera de carpir...” Se encostou, sinaladamente envelhecera, o mais velho. Mas não estava amotinado. Antes, tivera sabendas de que Mearim contrito a largara. Definiu: — “Tu tivesses flagelos...”
Sincero com afeto, quis que Mearim ali em Maria-da-Cruz parasse, onde em fatos ganhava, com caber para companheiro. Deu a ele cama e lugar em mesa, na casa. Lhe cedia revólver ou rifle: conforme que ninguém prospera sem inimigos achados. Mearim entendia. Mas, o que reteve, sentiu, ainda não pedindo perdão. Rijino imaginava em alguém ausente — escarrava. Outramaneira por dentro devia de curtir resumos, de tanta espécie. Dela, de Elpídia, mais nunca nada referia, tirante o de abafo. Ia, a cada vez, exato, ficava vendo vapores. Todo o mundo — rio-abaixo, rio-acima — acaba algum dia passando por estes cais.
Mearim ia, tal, também, com pena, espiava o ar aberto, ora com nojos de tão fácil se arrepender, desmentia os pensamentos.
O vapor manobrava em o se encostar, ela outro instante desaparecia. Mulher de atentada vontade. Rijino a trouxera e esposara, brejeira do Verde-Grande, quebradora de empecilhos. Do Rijino não gostou — nem os anjos-da-guarda.
Dele, Mearim, sim, querido, marcado, convivido. Entre o que, moço, ele sentia, sem saber olhar: só menção de responder, amor a futura vista. Ela fez que feliz oprimido a levasse; saídos escondidos, levara-o, para parar em Paulo-Afonso. Meses que passar, o quanto, despropósitos de vida. Essa ação de estar, ele acaba calcado não aguentara: o susto, uns medos, em madrugada, desgostosura, à voz de reprova, neste mundo tão sujeito.
Sem hoje nem onde, então ele se escapara, para qualquer comarca. Antes carecesse de concórdia, outras pausas, a natureza dele sendo mais quieta. Do que agora mudava. Dela tendo saudades, certas. Somente assim — sozinha e triste imaginada, sempre não enxergada, sua formosura em vai-vem, a jovem dormida nas florestas.
Ela, vem, que decidida, desastrada. E era o que o Rijino pelo jeito aprovava. Movendo drede para isso que ele Mearim ali em Maria-da-Cruz ficasse, para chamar atraído aquele açoite de amor. Rijino o ponto arrumara, não temendo o que fero se gera — na separação das pessoas. Mearim desentendia, returbado. Estimava, por dó ou grato expor, Rijino, que dele com agarrada e estúrdia afeição cuidava, como um pai, aborrecido, odioso. Mesmo a ela Rijino decerto notícias enviara, a fim de que viesse, e dinheiro! Há o fechado e o aberto. Havia.
A hora era cedo. O povo, influído, mais se ajuntava. Esses vapores aqui chegavam corretos no horário. Aí estavam desembarcando.
Ela, direita — uns meninos carregando o baú e trouxas. Só via a ele, Mearim, receava nada, os brincos balançando, tocando-lhe as faces, vinha com a felicidade. Ele no tolhimento; acolá o Rijino; o silêncio triplicado. Aquele perfume chegava ao sangue da gente. O Rijino deu passo.
Rijino em chofre segurara-a por um braço. — “Tu!” — demo, doloroso. — “Tu, não!” — ela renitiu, os dois em enrolamento, curto esforço. Ela puxara por um punhal, no mesmo lance, revirava-o, isso, o chiar de água em brasas. Rijino, pafo, caído, uma toda vez, findado. Só ela e o irremediado intervalo. Seja como se outra, destorcido o rosto, claro, à lástima arregalada, espiava para o alto e para o chão, por tudo o completo cansaço.
Ela estava ajoelhada.
Mearim, seus olhos se abriram muito, então, brilhados, tanto destapavam. Com que aí chegava povo, o excesso, as justiças e os soldados.
Mearim se levantou, de ajoelhado também, o sangue respingara-o. Seu coração entendeu. Iria, desde que enterrado o morto, à Lapa do Santuário do Santo-Senhor-Bom-Jesus, por um perdão, pela dor de todos. Depois, a vida dele era só aquela mulher, e mais, sofrida tida e achada, livre ou entre grades, mas que lhe pertencia, em reprofundo, mediante amor.


 João Guimarães Rosa, no livro "Tutaméia: Terceiras estórias". 9ª ed., Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2009.
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