Liquidação - Carlos Drummond de Andrade

© Alenka Sottler
Liquidação

A X lhe disseram que devia guardar seu dinheirinho no banco. É simples, cômodo, garantido. Ele não tinha propriamente o que guardar, mas ordenado não se gasta de pancada; depositá-lo, assinar alguns pequenos cheques, deixar um saldo bruxuleante para o mês seguinte: isso lhe dava certo prazer bancário, que X ia cultivando. Resultado: no fim de algum tempo, tal o poder germinativo do capital, tinha o que se chama “dinheiro no banco”. Não muito, o bastante para viver quinze dias de barriga para o ar, contando nuvens.
Indo para o trabalho, contemplava o banco, sem volúpia de avarento, mas satisfeito: ali estava seu cobrinho, para qualquer emergência: viagem de pobre, operação, uma dessas máquinas americanas que a mulher sempre julga imprescindível adquirir e que vão secando o rio Paraíba.
Surpreso, certa manhã viu uma fila agitada em frente ao banco que cerrara as portas. No dia seguinte, uma sigla qualquer do Banco do Brasil, pelos jornais, anunciava a liquidação do estabelecimento e esclarecia que, pelo decreto tal, de tantos de tantos, os depositantes de menos de cem mil cruzeiros receberiam imediatamente seu dinheiro. Magnânimo decreto! X viu que a casa se reabrira, entrou.
— Dentro de sete dias o senhor será atendido.
Bem, não há prazo de funcionamento para os advérbios. Imediatamente, em linguagem bancária oficial, quer dizer: daqui a uma semana. Finda esta, imediatamente passou a significar quinze dias. E converteu-se em um mês, dois, regressou a quinze dias, oscilou algum tempo na zona indeterminada de “a qualquer momento” e estabilizou-se na acepção nebulosa de “não podemos informar”. O banquinho assumira feição kafkiana. Abria-se todos os dias, para nada. Os ex-empregados (dispensados e readmitidos a título precário) ocupavam suas carteiras, ficavam esperando. O quê? Não havia negócios, o cofre estava lacrado, os clientes queriam apenas receber, mas isso só se faria imediatamente, isto é, quando Deus fosse servido.
Como é difícil liquidar um banco! Quanto mais um país, meditava ele, e isso lhe dava conforto cívico, em outra sorte de preocupações.
Veio a “emergência” e X, com dinheiro no banco, teve de pedi-lo emprestado a outro. Um dia, a sigla chamou-o pelo jornal. Foi, assinou um documento em que declarava tudo aquilo que o banco estava farto de saber: nome, endereço, saldo da conta-corrente etc., e outras coisas que não lhe haviam perguntado ao abrir-lhe a conta: se era casado, em que regime etc.
— Agora vou receber?
— Daqui a dez dias.
O advérbio se esticou de novo, de novo chamaram X, deram-lhe uma ficha que o habilitava a reaparecer dentro de cinco dias e a assinar sete papéis com duas testemunhas e firmas reconhecidas. Carimbaram tudo e mandaram X ao Banco do Brasil.
No BB, deram-lhe um papelinho e um caderno de cheques.
— Que é isso?
— É a sua conta-corrente no BB.
— Mas eu não tenho conta aqui.
— O senhor assinou um instrumento de cessão de direitos em quatro vias, e não se lembra disso?
Como toda gente, em todo o mundo, X assinara sem ler, e agora estava preso ao BB, engrenagem que sempre lhe inspirara majestoso pavor. Perguntou timidamente se podia sacar quanto quisesse. Sorrindo, disseram-lhe que sim. Pela dúvida, X encheu logo um cheque na importância total do saldo, rasgou os demais, recebeu o cobre e saiu correndo, com duas noções adquiridas: lugar de dinheiro é debaixo do colchão, e decreto de governo é brincadeira com dicionário.

— Carlos Drummond de Andrade, no livro "Fala, amendoeira". São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

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