Grande Gedeão - João Guimarães Rosa

© Vladimir Kush

Grande Gedeão

Gouvêia. Houve algum gigante desse nome? Mostrado outro mourejador — no em que ainda não vige a estória — físico, muscular; incogitante. Os Gouvêias em geral por lá são assim. Louvavam-no homem mui reformado e exemplar, prontificado de caráter, na pobreza sem projeto.

Tinha: dois alqueires, o que era nem sítio, só uma “situação”; e que sem matatempo ele a eito lavrava, os todos sóis, ano a ano, pelo sustento seu, da mulher, dos filhos. Excepto que em domingos e festas improcedia, esbarrava, submisso à rústica pasmaceira. Idiotava. Imitava. Ia à missa.
Entrequanto hospedou o lugar a santa-missão — três padres rubros robustos, goelas traquejadas e escolhidas, entrementes; capaz cada um de atroado pregar o dia inteiro.
A igreja cheia, o povo, via-se ali outrossim Gedeão, no acotovelo e abafo, se lhe dava.
Se disse, depois, que então já andava ele desengrivado. Diz-se que de manhas meras, quão e tão. Se diz aliás que a gente troca de sombra, por volta dos quarenta, quando alma e corpo revezam o jeito de se compenetrar. E quem vai saber e dizer? Em Gedeão desprestava-se atenção.
Mas o redentorista bradava a fé, despejada, glosava os fortíssimos do Evangelho. Informou: — “Os passarinhos! — não colhem, nem empaiolam, nem plantam, pois é... Deus cuida deles.” Em fato, estrangeiro, marretou: — “Vocês sendo não sendo mais valentes que os pássaros?!”
Deu em Gedeão — o que ouviu em cochilo — por isso mesmo repalavras, com ponta, o para se fechar na ideia; falado estava.
Solerte semelhante, o estilo dos pássaros... sem semeio, ceifa, atulho? Isso incumbiu-o. Ipsisverbal, a indicatura. Sacudiu-se; qualquer luz é sempre nova. Se benzeu e saiu, já de espírito pleno: reunida a família, endireitou-a para casa. Sabiá, o joão-tolo, alma-de-gato, gavião... em todo o volume de sua cabeça. Desagachou-se.
Sentou-se com totalidade. Fez declarado o voto, como quem faz bodoque ou um dique: — “Vou trabalhar mais não.” Sério como um cavalo de circo, cruzou pernas e braços. Escutavam-no consternados.
O que, raro, foi. Gedeão, em encasqueto, alforriara-se do braçal. Impostoria. Ou o empaque: por rijas fadigas, duro jugo. Era loucura e tanta! Invalidava-se — o que importava miséria. Falaram do caso; havendo o de que se falar. Já vinham lá os amigos-de-jó.
E escabrearam-se: vosso Gedeão, no não é que não, sem correr-se nem recear, moucou-se. Mas a prumo, recorreto, cordial, para demonstrar a quase nenhuma maluquez. Somava mor com só o fino e o todo. Deixou os sapos na lagoa.
Tinha de usar-se: o à-toa tornava mister a domingueira roupa, calçado, e intatas maneiras — sem propósito nem alvo, como um bom espirro — na utilidade definitiva da semana. Domingo de não se estragar. Diverso de antes, em acômodo, temia menos fuxicar-se, sujar-se, discordar das horas.
Irosa, chorosa, punha-lhe a mulher o de-comer, lavava-lhe as camisas; brava para os filhos, que o olhavam duplicado, quiçá com inveja. Fé é o que abre no habitual da gente uma invenção, Gedeão, entre outros alívios, o que abala a base. Teimava aceso, em si, tralalarava. O à-toa havia de desempenhar-se. Ele bebendo? Não. Se todos fizessem assim, eh? — “Não fazem.”
Queriam-lhe os motivos, aventavam. Increpou-o mesmo o padre, iterativo, de contra o jus e o fas: — “Quem põe e não tira, faz monte. Quem tira e não põe, faz buraco...” Gedeão fingia coçar a cabeça, como quando o pato anda de lado. Mal imaginava sem muitas vírgulas e pontos, no argumento com fundamento: o céu, superedificante, de Deus, que amarela o milho maduro. Ele e as aves.
Desfez no padre depois, de confuto, pensou um sussurro: — “Missionário é mestre deles...” — e aquele já longe andava. Era homem entendido de si, sua noção abecedada, a ver verdades.
Nem ia mofar, sem achar quê, no Afundado, em seu dois-alqueires, só a rodar a visão fortuna. Visitava este universo e o arraial, onde comprava fiado; viam-no feliz como o se alastrar da abobrinha nova, forte como testa de touro preto.
Deu-lhes de supor: que ali o plus e extra houvesse, seus silêncios parecendo cheios de proveito. Descobrira acaso enterrada panela de dinheiro, somente e provavelmente, pelo que, certífico, estudava o mandriar, guardada ainda sua munificácia, jubiloso do achado. O segredo circula, quando mais secreto? O grão respeito começava.
Vagava-lhe tempo e o repouso mandava-o meditar — renovado o carretel de ideias — de preguiçoso infatigável. Vigiava. Atento, a-certas, ao em volta: ao que não se passava. Nisso o admiravam.
De pura verdade, recuidasse em que os pássaros não voam de-todo no faz-nada-não, indústria nenhuma, praxe que se remexem, pelos ninhos, de alt’arte; pela moradia — o joão-de-barro? Decidiu uns outros movimentos.
Vender quis o Afundado. Tolheu-o a mulher e o inquinou: de malandrado dôido e impróvido acordadamente, sonhando à fiú-za de nem-nada. Tocou-o embora.
Gedeão dispôs-se: — “Isso eu não embargo...” Emprestaram-lhe cavalo magro, patas e cabeça, alazãozérrimo. Saía — concreto como o chão de lá, sucinto em gume — a ter-se e dar-se.
Não houve-que.
Logo o cercaram. Propunham-lhe, de urgente repente, ágios, ócios, negócios, questavam-no. O por exemplo. Aceitasse gerir, de riba, o rumo de fazenda, das Jiboias, onde a casa-grande se retelhava?
Isso o Gedeão meneava e mais — com fagulhas financeiras — ao curto crédito e trato de seu gesto. Entrava a remudado, lúcido luzente, visante. Tirou o chapéu de debaixo do braço.
E — tome realidade! Vindo-lhe, com pouco, cifrão e caduceu, quantias que tantas: seu dinheiro estava já em aritméticas. Reavultava, prezado ante filhos e mulher — avoado — apotestado, sócio da sábia vida. O tempo ajuntara mais gente em redor dele.
Agora acabou-se o caso. De Gedeão, grande, conforme os produzidos fatos. No estranhado louvor de desconhecidos, vizinhos e parentes, festejando-se. Sendo que pasma-os ainda hoje — e fez-lhes crer que a Terra é redonda. Alelúia.


 João Guimarães Rosa, no livro "Tutaméia: Terceiras estórias". 9ª ed., Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2009.

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