Dão-Lalalão - João Guimarães Rosa

guimarães rosa, por mariana poppovic

“Da mandioca quero a massa e o beijú, 
do mundéu quero a paca e o tatú; 
da mulher quero o sapato, quero o pé! 
— quero a paca, quero o tatú, quero o mundé... 
Eu, do pai, quero a mãe, quero a filha: 
também quero casar na família. 
Quero o galo, quero a galinha do terreiro, 
quero o menino da capanga do dinheiro. 
Quero o boi, quero o chifre, quero o guampo 
do cumbuco, do balaio, quero o tampo. 
Quero a pimenta, quero o caldo, quero o molho 
— eu do guampo quero o chifre, quero o boi 
Qu’é dele, o dôido, qu’é dele, o maluco? 
Eu quero o tampo do balaio, do cumbuco...” 

(Coco de festa, do Chico Barbós’, dito Chico
 Rabeca, dito Chico Precata, Chico do Norte,
 Chico Mouro, Chico Rita — na Sirga,
 Rancharia da Sirga, Vereda da Sirga, Baixío da
 Sirga, Sertão da Sirga.)


Dão-Lalalão (O Devente)

Soropita, a bem dizer, não esporeava o cavalo: tenteava-lhe leve e leve o fundo do flanco, sem premir a roseta, vezes mesmo só com a borda do pé e medindo mínimo achêgo, que o animal, ao parecer, sabia e estimava. Desde um dia, sua mulher notara isso, com o seu belo modo abaianado — o rir um pouco rouco, não forte mas abrindo franqueza quase de homem, se bem que sem perder o quente colorido, qual, que é do riso de mulher muito mulher: que não se separa de todo da pessoa, antes parece chamar tudo para dentro de si. Soropita tomara o reparo como um gabo; e se fazia feliz. Nem dado a sentir o frio do metal da espora, mas entendendo que o toque da bota do cavaleiro lhe segredasse um sussurro, o cavalo ampliava o passo, sem escorrinhar cócega, sem encolher músculo, ocupando a estrada com sua andadura bem-balanceada, muito macia. Era pelo meio do dia. Saíam de Andrequicé.
Soropita ali viera, na véspera, lá dormira; e agora retornava a casa: num vão, num saco da Serra dos Gerais, sua vertente sossolã. Conhecia de cór o caminho, cada ponto e cada volta, e no comum não punha maior atenção nas coisas de todo tempo: o campo, a concha do céu, o gado nos pastos — os canaviais, o milho maduro — o nhenhar alto de um gavião — os longos resmungos da jurití jururú — a mata preta de um capão velho — os papagaios que passam no mole e batido voo silencioso — um morro azul depois de morros verdes — o papelão pardo dos marimbondos pendurado dum galho, no cerrado — as borboletas que são indecisos pedacinhos brancos piscando-se — o roxoxol de poente ou oriente — o deslim de um riacho. Só cismoso, ia entrado em si, em meio-sonhada ruminação. Sem dela precisar de desentreter-se, amparava o cavalo com firmeza de rédea, nas descidas, governando-o nos trechos de fofo chão arenoso, e bambeando para ceder à vontade do animal, ladeira acima, ou nos embrejados e estivados, e naquelas passagens sobre clara pedra escorregosa, que as ferraduras gastam em mil anos. Sua alma, sua calma, Soropita fluía rígido num devaneio, uniforme.
Um Olhar para o Sertão, de Adriano Alves
Por contra, porém, quando picavam súbitos bruscos incidentes — o bugiar disso-disto de um saguí, um paspalhar de perdiz, o guincho subinte de um rato-do-mato, a corrida de uma preá arrepiando em linha reta o capim, o suasso de asas de um urubú peneirante ou o perpassar de sua larga sombra, o devoo de um galo-do-campo de árvore alta para árvore baixa, a machadada inicial de um picapau-carpinteiro, o esfuzío das grandes vespas vagantes, o estalado truz de um beija-flor em relampejo — e Soropita transmitia ao animal, pelo freio, um aviso nervoso, enquanto sua outra mão se acostumara a buscar a cintura, onde se acomodavam juntos a pistola automática de nove tiros e o revólver oxidado, cano curto, que não raro ele transferia para o bolso do paletó. No coldre, tinha ainda um niquelado, cano longo, com seis balas no tambor. Soropita confiava neles, mesmo não explicando a rapidez com que, em caso de ufa, sabiam disparar, simultâneas, essas armas, que ele jamais largava de si.
Vez a vez, esbarrava, e atentava para a farfa da folhagem, esperando, vigiador, até que se esclarecesse o rebulir com que a movera algum bicho. Seus olhos eram mais que bons. E melhor seu olfato: de meio quilômetro, vindo o vento, capturava o começo do florir do bate-caixa, em seu adêjo de perfume tranquilo, separando-o do da flor do pequí, que cheirava a um nôjo gordacento; e, mesmo com esta última ainda encaracolada em botão, Soropita o podia. Também poderia vendar-se e, à cega, acertar de dizer em que lugar se achava, até pelo rumor de pisadas do cavalo, pelo tinir, em que pedras, dos rompões das ferraduras. Nessas direções cruzava, habitual: muita semana, vinha e ia até duas vezes. Durante a mocidade afeito a estar sempre viajando distâncias, com boiadas e tropas, agora que se fixara ali nos Gerais o espírito e o corpo agradeciam o bem daquelas pequenas chegadas a Andrequicé, para comprar, conversar e saber. Do povoado do Ão, ou dos sítios perto, alguém precisava urgente de querer vir — segunda, quarta e sexta — por escutar a novela do rádio. Ouvia, aprendia-a, guardava na ideia, e, retornado ao Ão, no dia seguinte, a repetia aos outros. Mais exato ainda era dizer a continuação ao Fraquilim Meimeio, contador, que floreava e encorpava os capítulos, quanto se quisesse: adiante quase cada pessôa saía recontando, a divulga daquelas estórias do rádio se espraiava, descia a outra aba da serra, ia à beira do rio, e, boca e boca, para o lado de lá do São Francisco se afundava, até em sertões.
Soropita pousava em Andrequicé na casa de Jõe Aguial, que se mudara para o Ão mas conservava aquela moradia ali, desocupada constantemente. Soropita lá deixava guardada sua rede. Sobre o seguro: casa antiga, mas de bôas portas, que se fechavam com tranca, tramela e chave. Tinha uns buracos, disfarçados — agulheiros, torneiras e portilhas — nos tremós e debaixo das janelas, por onde se pingar para fora o bico do revólver. Se, de noite, muitos a assaltassem, havia escape pelos quatro lados, a porta-da-cozinha dando para o bem sabido de um bamburral, que corria até à estrada. Tinha ganchos em todos os cômodos, num lugar diferente cada dia a rede podia se armar. Ainda que, por si, Soropita gostasse mais de dormir em jiráu ou catre. Mesmo com os sonhos: pois, em cama que a sua não fosse, costumeira, amiúde ele sonhava arrastado, quando não um pesadêlo de que pusera a própria cabeça escondida a um canto — depressa carecia de a procurar; e amanhecia de reverso, virado para os pés; de havia algum tempo, era assim.
Doralda, sua mulher, nunca pedira para vir junto. O mimo que alegava: — “Separaçãozinha breve, uma ou outra, meu Bem, é a regra de primor: tu cria saudade de mim, nunca tu desgosta...” Desconfiança dela, sem bases. Quisesse o acompanhar, ele fazia prazer. Todos no Andrequicé a obsequiavam, mostravam-lhe muito apreço, falavam antenome: “Dona Doralda”. Doralda era formoso, bom apelativo. Uma criancice ela caprichar: — “Bem, por que tu não me trata igual minha mãe me chamava, de Dola?” Dizia tudo alegre — aquela voz livre, firme, clara, como por aí só as moças de Curvelo é que têm. O outro apelido — Dadã — ela nunca lembrava; e o nome que lhe davam também, quando ele a conheceu, de Sucena, era poesias desmanchadas no passado, um passado que, se a gente auxiliar, até Deus mesmo esquece.
Soropita na baixada preferia esperdiçar tempo, tirando ancha volta em arco, para evitar o brejo de barro preto, de onde o ansiava o cheiro estragado de folhas se esfiapando, de água pôdre, choca, com bichos gosmentos, filhotes de sapos, frias coisas vivas mas sem sangue nenhum, agarradas umas nas outras, que deve de haver, nas locas, entre lama, por esconsos. A nessas viagens, no chapadão, ou quando os riachos cortam, muita vez se tinha de matar a sede com águas quase assim, deitadas em feio como um veneno — por não sermos senhores de nossas ações. Mal mas o pior, que podia ser, de fim de um, era se morrer atolado naquele ascoso.
Doralda dizia que não, não vinha ao Andrequicé: que aluir dali, do Ão, só para cidade grande, Pirapora, Belorizonte, Corinto, com cinema, bom comércio, o chechego do trem-de-ferro. O resto era roça. — “Mas aqui eu estou de minha, Bem, estou contente, tu é companhia...” Falava sincera, não formava dúvida. A gente podia fiar por isso, o rompante certo, o riso rente, o modo despachado. Doralda não tinha os manejos de acanhamento das mulheres de daqui, que toda hora estão ocultando a cara para um lado ou espiando no chão. Sertaneja do Norte, encarava as pessoas, falava rasgado, já tinindo de perto da Bahia; nunca dizia “não” com um muxoxo. Ralhava que ele tomasse muito cuidado consigo, pelos altos, pelos matos. — “Tomo não, Bem. Um dia sucuriú me come...” — ele caçoava em responder. Doralda então ficava brincando de olhar para ele sem piscar, jogando ao sério: os olhos marrons, molhavam lume os olhos. Nesses brejos maiores de vereda, e nos corguinhos e lagôas muito limpas, sucurí mora. Às vezes ela se embalança, amolecida, grossa, ao embate da água, feito escura linguiça presa pelas pontas, ou sobeja serena no chão do fundo, como uma sombra; tem quem escute, em certas épocas, o chamado dela — um zumbo cheio, um ronco de porco; mas se esconde é mais, sob as folhas largas, raro um pode ver quando ela sai do pôço, recolhendo sol, em tempo bom.
Nem tudo era perigo: fazia um barulhinho, o cavalo mesmo tirava de banda, entortado, as orêlhas em amurcho, encostadas no pescoço — conhecia seu cavaleiro. E não era azo de coisa. Só somente uma pêga, que veio dar na ramada, espreguiçava as asas, pousou no gonçalo-alves, encarquilhando a cauda. Custou a se dizer, e piou pouco. — “Quase pássaro nenhum canta agora, na seca...” O cavalo era de fiança: um aviso bastava com ele antes se falar — e a gente podia desfechar tiro, a bala passando entre as orêlhas dele, que esperava, quieto, testalto, calmo, nem fitando. O braço de Soropita esbarrara num dos alforjes; estava bem abotoado, afivelado em seguro. Ali dentro, trazia para a mulher o presente que a ele mais prazia: um sabonete cheiroso, sabonete fino, cor-de-rosa.
Do cheiro, mesmo, de Doralda, ele gostava por demais, um cheiro que ao breve lembrava sassafrás, a rosa mogorim e palha de milho viçoso; e que se pegava, só assim, no lençol, no cabeção, no vestido, nos travesseiros. Seu pescoço cheirava a menino novo. Ela punha casca-boa e manjericão-miúdo na roupa lavada, para exalar, e gastava vidro de perfume. Soropita achava que tanto perfume não devia de se pôr, desfazia o próprio daquela frescura. Mas ele gostava de se lembrar, devagarinho, que estava trazendo o sabonete. Doralda, ainda mal enxugada do banho, deitada no meio da cama. Tinha ouvido contar da casca da cabriúva: um almíscar tão forte, bebente, encantável, que os bichos, galheiro, porco-do-mato, onça, vinham todos se esfregar na árvore, no pé... Doralda nunca o contrariava, queria que ele gostasse mesmo de seu cheiro: — “Sou sua mulher, Bem, sua mulherzinha sozinha...” A cada palavra dela, seu coração se saía.
Ela tinha sempre um tento de estar perto, quando ele chegava de volta em casa. Não na porta-da-rua, nem em janela; mas também não se encafuava, na cozinha ou em quintal, nem se desmazelava, como outras, mesmo pouquinho tempo depois de casadas, costumavam ser. Que era dona-de-casa, quem referia era ele, que jurava. Comida gostosa, apimentada, temperos fortes. Para a saúde, vai ver não fosse bom, era reimoso; mas a mulher se ria, perto dela não se podia pensar em coisas mofinas. Achava fio de cabelo dela, não tinha repugnância, não se importava. — “Bem: eu cuspisse dentro da sopa, você tinha escrúpulo de tomar? Você gosta de mim de todo jeito?” Asco nenhum. O cuspe dela, no beijar, tinha pepego, regosto bom, meio salobro, cheiro de focinho de bezerro, de horta, cheiro como cresce redonda a erva-cidreira. Antes nem depois, Soropita nunca tinha beijado em boca outra mulher nenhuma. Nem comer comida babujada. Voltar para casa, as horas correndo bem, era o melhor que havia.
Mas enjooso esse estirão de estradas de areia, espigão a fora, no cerrado: se sumiam os cascos, se enterrando, de eslôxo, com esforço o cavalo puxava, acacundado. Pior, porém, se traz o frio, o vento frio até no umbigo, desenrolado de ruim, que não esbarrava de ventar — a ver as árvores ali tremem sempre. Podia fazer mal, moleza maldita era a dum defluxo, o bambo que depois a gente ficava. Soropita sofreou, mexia na capanga dos remédios, que tinha comprado vários: láudano, bálsamo de unguento, desinfetante lisol. Doralda não tomava remédio, tinha embirrância. Vez que outra, com jeito, Soropita dava assim por entender que convinha se usar depurativos; mas ela fincava que não — nunca tinha tido nenhuma doença, não carecia. Mal havia? Praxe ali era mesmo as pessôas sãs comerem carne de gambá, saudável para o sangue; outros se remedeiam com águas de ervas, caroba-do-campo, caroba-do-brejo. Doralda gostava de bebidas de regalo. Se dava por um cálice de vinho. Queria uma garrafa de genebra; no Andrequicé não se achava. Mas Soropita trazia umas três, de conhaque bôa marca, que encomendara. Só às menos das vezes Soropita bebia qualquer espírito; tirava um prazer muito grande daquilo, da bebida, não devia-de. Mas, cheiro de cachaça, de distância de uns cinco palmos já o ofendia. Se lembrava do velho. Ainda era mocinho, primeira ocasião em que estava provando aguardente: num pouso, de manhã, com muito frio, já tinha botado no copo, quando o velho escarrou, mesmo encostado nele — até sua mão ficou respingada — uma escréia feia — eh, arrepiava, se encolhia. Ou, então, quando molhado de chuva, engolir a cachaça tapando nariz, para não sorver o cheiro — modo do seo Vivim, um medidor-de-terras, que já estava branco visível e magro de esfarinhar a pele, e não comia mais, nem tinha fome, e bebia o tempo todo, mas apertando o nariz, por ele mesmo, se o cheiro sentisse, não romitar a cachaça. Conhaque, tomava três dedos, com gengibre e leite, mas como remédio, por atalhar resfriado. Cordas de vento. Desembrulhou o bastãozinho, foi passando a manteiga-de-cacau nos beiços. Esfregava devagarinho, comprazido. O vento diabrava. Aquele ar, os frios mordem, era uma miséria, vinha da Serra Geral, de além, os ares.
A palma-da-mão tocou na cicatriz do queixo; rápido, retirou-a. Detestava tatear aquilo, com seu desenho, a desforma: não podia acompanhar com os dedos o relevo duro, o encroo da pele, parecia parte de um bicho, se encoscorando, conha de olandim, corcha de árvore de mata. A bala o maltratara muito, rachara lasca do ôsso, Soropita esteve no hospital, em Januária. Até hoje o calo áspero doía, quando o tempo mudava. Repuxava. Mas doíam mais as da coxa: uma bala que passara por entre a carne e o couro, a outra que varara, pela reigada. Quando um estreito frio, ou que ameaçava chuva, elas davam anúncio, uma dôr surda, mas bem penosa, e umas pontadas. As outras, mais idosas, não atormentavam — uma, de garrucha, na beirada da barriga e no quadril esquerdo; duas no braço: abaixo do ombro, e atravessada de quina, no meio. Soropita levava a mão, sem querer, à orêlha direita: tinha um buraco, na concha, bala a perfurara; ele deixava o cabelo crescer por cima, para a tapar dum jeito. Que não lhe perguntassem de onde e como tinha aquelas profundas marcas; era um martírio, o que as pessoas acham de especular. Não respondia. Só pensar no passado daquilo, já judiava. “Acho que eu sinto dôr mais do que os outros, mais fundo...” Aquela sensiência: quando teve de aguentar a operação no queixo, os curativos, cada vez a dôr era tanta, que ele já a sofria de véspera, como se já estivessem bulindo nele, o enfermeiro despegando as envoltas, o chumaço de algodão com iodofórmio. A ocasião, Soropita pensou que nem ia ter mais ânimo para continuar vivendo, tencionou de se dar um tiro na cabeça, terminar de uma vez, não ficar por aí, sujeito a tanto machucado ruim, tanto desastre possível, toda qualidade de dôr que se podia ter de vir a curtir, no coitado do corpo, na carne da gente. Vida era uma coisa desesperada.
Doralda era corajosa. Podia ver sangue, sem deperder as cores. Soropita não comia galinha, se visse matar. Carne de porco, comia; mas, se podendo, fechava os ouvidos, quando o porco gritava guinchante, estando sendo sangrado. E o sangue fedia, todo sangue, fedor triste. Cheiros bons eram o de limão, de café torrado, o de couro, o de cedro, boa madeira lavrada; angelim-umburana — que dá essência de óleo para os cabelos das mulheres claras. Por dizer que o cheiro do jatobá fedia seco, muitos companheiros homens dormindo juntos num rancho, em noite de meio calor. Mesmo a mulher não indagava donde ele arranjara aqueles sinais de arma alheia; ela adivinhava que ele não queria. Mas, quando estavam deitados em cama, Doralda repassava as mãos nas grossas costuras, numa por uma, ua mão fácil, surpresas de macia, passava a mão em todo o corpo, a gente se estremecia, de cócega não: de ser bom, de ânsia. Mel nas mãos, nem era possível se ter um mimo de dedos com tanto meigo. Toda mulher gosta de espremer espinhas e cravos, tomar sorrateira conta de corpo de homem, da cara do homem. Doralda o respeitava: — “Um dia eu deixar de gostar de você, Bem, tu me mata?” “— Não fala tontagem, coisas com ponta...” — ele quase zangava. — “Então, Bem, não truge cara pra a tua mulherzinha, você é meu dono, macho... Eu precisar, tu pode dar em mim.” Nisso não havia de pensar. Doralda parecia uma menina grande; menina ajuizada. Nunca estava amuada, nem triste. “Nunca um pensamento dela doeu em mim... Nunca me agrediu com um choro falso...” Uma mulher emburrada, que suspira, era coisa desgraçável: tinha visto, as de outros, quase todas; sina sem sorte, um se casar com mulher assim. Ela, Doralda, não: ela já vinha de olhos livres, coração contente. A hora que se sentia o coração dela bater até nas palmas de suas mãos, quando ele pegava, apertava, as mãos, por suave, finas, uma fazenda; e o pé encostava na perna dele, debaixo das cobertas: pé assim, liso, branquinho — quente ou frio — ela nunca tinha andado descalça. O que condenava, em gracejo, era ele não querer beber, vez em quando, nem um gole. — “É bom, Bem: faz um calor de se querer-bem mais vagaroso, mais encalcado...” Trejeitava. — “Tu põe a mão em mim, eu arrupêio toda. Eu viro água...” Ela queimava alecrim, caatiguá, cipó-de-sempre, no quarto, de noite, antes de irem se deitar. Quassava a chegadinha, para borrifar na roupa de cama, ou para fumigar. Outra ocasião, encomendava pitada de incenso ou resinas de breu-branco, que oficiava de arder em todos os cômodos: a levar do ar os quebrantos, qualquer pego de má-sorte; a casa almiscrava que nem igrejas, de remanente espairecendo santo assim, semana, pelos cantos. Um dia, falou no pozinho alvo que algumas pessoas na cidade chupavam pelo nariz, por prazêres.
— “Cocaína, meu Bem. Experimentei só uma vez, só umas duas vezinhas, na unha, açucaral, um tico. Tem gente que bota no cigarro. Boca fica um frio, céu-da-boca dormente, aquela cânfora boa. Dá vontades emendadas, não acaba...” Segredava a singeleza: — “...A gente provar, Bem, e eu te beijar tua língua, em estranho, feito um gelo...” Mas estava falando só por divertimento, de caçoada. Sabia que aquilo, ah, o vício, produzia mal, perigoso. No curto dum prazo, nem não valia mais para o realce do efeito, umas mulheres terminavam até loucas, de morrer. Era uma pena... — “Mas, diz que tem um cinema...” Soropita não a encarava. Aí foi ela mesma que logo explicou — que tinha conhecido a cocaína na terra dela, nas Sete-Serras, perto de Canabrava, mais adiante do Brejo-das-Almas. Ah, mas pouco possível, então, naquele lugarejo distrito, sem civilização dessas coisas... — e fugia de Soropita a coragem de perguntar quem a ela tinha ensinado. Subentendia, até a frouxo, num perturbo, torvado de que ela fosse falando à tonta, dizer uma gravidade pior. Mas Doralda, que nunca tirava os olhos dele, acrescentou: que uma vizinha, senhora séria, dona viajosa, até casada... Mas Doralda não mentia, nunca houve, se algum fato ele perguntava. No que transformava a verdade de seus acontecidos, era para não ofender a ele, sabia como se ser.
— “Ainda é nada não, Caboclim. Vamos...” Jurití que passavoou, no arranco zumbido — sopro e silvo. Bando delas. Soropita aconselhava o cavalo. Roçagava-lhe o vazio com o ágil contacto furtado de roseta, Caboclim se estugava. Fim de pouco, findo o arenoso, desladeavam por um galho da estrada, caminho-de-tropeiro, mas que sentava bem, depois do cerradão de sucupiras. Caboclim timbrava na marcha viageira, subia suas patas. Num formo de mato como aquele, no estorvo, sempre podia haver alguém emboscado, gente maligna, inveja do mundo é muita. Sujeitos que mamaram ruindade, escorpêiam, desgraçam — por via desses, viajar era sempre arriscado e enganoso. Uns que não acertavam com o mereço de acautelado viver, suas famílias, com seu trabalho. Doralda declarava que não tinha filho, por contrária natureza. Às vezes perguntava, com a atribulação: — “Mas tu queria? Tu quer que eu tenho?” Vigiava o fundo da resposta que ele ia responder. Aos nadas — que filho também, nenhum, não fazia sua falta. Doralda mesma enchia a casa de alegria sem atormentos, nem parecendo por empenho, só sua risada em tinte, seu empino bonito de caminhar, o envago redondado de seus braços. Não se denotava nunca afadigada de trabalho, jogava as roupas por aí, estava sempre fingindo um engraçado desprezo de todo confirmar de regra, como se não pudesse com moda nenhuma de sério certo. Mas, por ela, perto dela, tudo resultava num final de estar bem-arrumado, a casa o simples, sem se carecer de tenção, sem encargo; mais não se precisava. Diversa de tantas mulheres, as outras viviam contando de doenças e remedando fastíos. Doralda tinha apetite contente em mêsa, com distintas maneiras. Soropita não aceitava carne assada malmal, fêbras vermelhas, sangue se vendo. Doralda guisava para ele tudo de que ele gostava, nunca se esquecia: — “Tu entende, Bem: comer é estado, daí vem uma alegria...” Mordia. Tinha aqueles dentes tão em ponta, todos brilhos, alimpados em leite — dentinhos de traíra rajadona.
Nem era interesseira, pedia nada. — “Não precisa, Bem, carece nenhum. Tua mulherzinha tem muita roupa. Carece de vestido não: eu me escondo em teus braços, ninguém não me vê, tu me tapa...” Ele ria, insistia. Doralda, aquela elegância de beleza: como a égua madrinha, total aos guizos, à frente de todas — andar tão ensinado de bonito, faceiro, chega a mostrar os cascos... — “Então, Bem, se tu quer que quer, traz. Mas não traz dessas chitas ordinárias, que eles gostam de vender, não. Roupa p’ra capiôa, tua mulherzinha ficava feia, tu enjôa dela. Manda vir fazenda direita, seda rasa. Olh’, lança no papel, escreve; escuta...” Um dia Soropita levou ao Andrequicé um vestido dela, tirado do corpo, para servir de amostra. Dormiu abraçado com ele — o vestido durava o cheiro dela, nas partes, nas cavas das mangas — Soropita enrolara-o no rosto, queria consumir a ação daquele cheiro, até no fundo de si, com força, até o derradeiro grão de exalo. Custou pousar no sono, pelo que acima tressonhava.
Para ela trazia agora muitas coisas — se alegrando: o corte de molmol, os grampos, os ramos de pano para toalhas; uma miudeza ou outra, de casa. Mas os presentes, ah, por demais, eram de se ter o todo valor! Respirava. O aroma do capim apendoado penetrava no ar, vinha — nem se precisava de abrir os olhos, para saber das roxas extensões lindas na encosta — maduro o melosal. Chegar em casa, lavar o corpo, jantar. Da chegada, governando cada de-menor, ele ajuntava o reparo de tudo, quente na lembrança. O que ia tornar a ter. O advoo branco das pombas mansas. A paineira alta, os galhos só cor-de-rosa — parecia um buquê num vaso. O chiqueiro grande, a gente ouvindo o sogrunho dos porcos. O curralzinho dos bodes. Pequenino trecho de uma cerca-viva, sobre pedras, de flôr-de-seda e saborosa. E, quase de uma mesma cor, as romãzeiras e os mimos-de-vênus — tudo flores: se balançando nos ramos, se oferecendo, descerradas, sua pele interior, meia molhada, lisa e vermelha, a todos os passantes — por dentro da outra cerca, de pau-ferro.
Havia mais de três anos Soropita deixara a lida de boiadeiro; e se casara com Doralda — no religioso e no civil, tinha as alianças, as certidões. Se prezava de ser de família bôa, homem que herdou. Com regular dinheiro, junto com seus aforros: descarecia de saber mais de vida de viagens tangendo gado, capataz de comitiva. Adivinhara aquele lugar, ali, viera, comprara uma terra, uma fazenda em quase farto remedeio; dono de seus alqueires. E botara também uma vendinha resumida, no Ão — a única venda no arruado existente, com bebidas, mantimentos, trens grosseiros, coisas para o diário do pobre. Arranjara, com muita sorte, bons braços de eito, gente toda de se confiar. Todos o respeitavam, seu nome era uma garantia falável. E ainda havia de melhorar aquilo. — “Ninguém me tira do meu caminho. No eu começando, eu quero ir até na orêlha...” — rompia dizer. A mulher ouvia e senserenava, entusiasmada, espirituada: — “Eu também, Bem...” — e se pegando com abraço, brincando de morder. Sabia sumir um, nisso. Em vez, o que assentava menos, era quando ela se esquecia assim em frente de outras pessoas, ele parava vexado, destorcia seu acanho variando uma conversa. Mas não descampeava, nem ficava aborrecido por pouco: um não desfaz no carinho de quem a gente gosta, só por causa que os estranhos estando vendo.
Mais acontecia ele figurar de cansado, deixar que airassem. Assim estavam jantando, vinham os do povoado, receber a nova parte da novela do rádio. Solertes, citavam como a estória podia progredir por diante, davam uma conversação geral. A o certo ponto, ele promovia um porfim: cochilando, bocejando, viajado da viagem — dizia e repetia. Ajudavam com o bôa-noite, iam s’embora sensatamente. Gente bôa, a do Ão, lugar de lugar. Senhor Zosímo, o fazendeiro goiano, desarmou desdém, reconhecendo que se podia gostar demais dali. Esse tinha feito a Soropita, a sério, uma proposta: berganhar aquilo por sua grande fazenda, dele, cinco tantos maior, em Goiás, fundo de rumo de Planaltina. Orelhadas, porteiras fechadas — e ainda voltava dinheiro, para as mudanças. Um homem que correto; e o Jõe ouvira de um dos camaradas dele que tudo era o exato dito — as aguadas, terras de cultura de especial qualidade, o gado ganhante, os pastos bons. Sempre que o ponto distava dó de longe, muito sertão, num ermo só perto do constante de Deus, isso sim. O Campo Frio, se chamava. Num tão apartado, menino-pequeno de vaqueiro, em antes de aprender a falar, aprendia a latir, com os cachorros. Restavam matas-virgens, por avar, e estradas no escuro, por mesmo dentro das matas, com sóbes e desces, e pedregulho, por onde quando no raro passava uma tropa, ou um cavaleiro sozinho, súbito depois os coatís surgiam do mato, por trás, para remexer no estrume quente dos cavalos. Onde até as jiboias que iam atravessando o caminho reluziam a modo mimosas, semelhando que podiam machucar no aspro aquele corpo delas, desenhado colorido. Aí, o tom das ferraduras abria de repente o canto de passarinhos desconhecidos, no sombrio. Ah, e lá, se estava morrendo no solto alguma rês ou um animal, urubú tinha de brigar, por inteiros dias, com o gavião-de-penacho e os lobos-do-campo.
Senhor Zosímo era homem positivo, tinha sido de tudo, até amansador de cavalos, peão. Agora ele passava de volta, dali a uns dias, de Corinto, tinha pedido, recomendado muito que Soropita resolvesse no negócio; queria sair de lá, do Campo Frio, por conta dos filhos, do ensino desses, e porque lá não tinha parente nenhum, tinha parentes em Curvelo, Angueretá, Pirapama, era mineiro também, arranjara aquela fazenda em Goiás por simpleza do destino. Tão distante solidão, longe do trem-de-ferro, dos outros usos. Todos achavam não valia a pena. Soropita não queria saber — só perguntava conselhos a Jõe Aguial. Nisso não tinha vontade naquilo. Doralda havia de se entristecer só com a ideia; Doralda dizia que era bonito a gente ver passar o trem-de-ferro, ficar olhando. Dali do Ão, algum dia, só para cidade grande, em sonho que fosse.
Chegava a casa, abria a cancela, chegava à casa, desapeava do cavalo, chegava em casa. A felicidade é o cheio de um copo de se beber meio-por-meio; Doralda o esperava. Podia estar vestida de comum, ou como estivesse: era aquela onceira macieza nos movimentos, o rebrilho nos olhos acinte, o nariz que bulia — parecia que a roupa ia ficando de repente folgada, muito larga para ela, que ia sair de repente, risonha e escorregosa, nua, de de dentro daquela roupa. Estavam deitados; um cachorro latia em alguma parte; Soropita tinha suas armas, o revólver grande debaixo da cama, o oxidado, o “crioulo”, ou a automática, debaixo do travesseiro. Se era nas águas, chuviscava lá fora, a gente seguia o merecido empapar da terra, o demolhar das grandes folhagens. Agora, era a seca, o friinho feliz, que enrugava tudo. Doralda lá, esperando querendo seu marido chegar, apear e entrar. Ao que era, um pássaro que ele tivesse, de voável desejo, sem estar engaiolado, pássaro de muitos brilhos, muitas cores, cantando alegre, estalado, de dobrar. Chegar de volta em casa era mais uma festa quieta, só para o compor da gente mesmo, seu sim, seu salvo. De tão esplêndido, tão sem comparação, perturbando tanto, que sombreava um medo de susto, o receio de devir alguma coisa má, desastre ou notícia, que, na última da hora, atravessasse entre a gente e a alegria, vindo do fundo do mundo contra as pessôas.
O sobressonhar de Soropita se apurava, pesponto, com o avanço sem um tropeço naquele espaço calmo de estrada, Caboclim esquipando, reconhecendo o retorno. Vinham através de um malhador de pasto, a poeira vaporosa do esterco bovino chamava do sangue de Soropita um latejo melhor, um tempero de aconchêgo. Com o calor que o coxim da sela lhe passava para o fundo-das-costas — um calor grosso, brando, derramável, que subia às virilhas e se espalhava e enrijava — o bem do corpo tomava mais parte no pensado, o torneio das imagens se espessava. Também já trazia aquilo repetido na cabeça, o que mesmeava em todas as suas viagens.
O que era: um gozo de mente, sem fim separado do começo, aos goles bebido, matutado guardado, por si mesmo remancheado. Pelo assunto. Por quando, ao fim do prazo de trinta, quarenta dias, de viagem desgostosa, com as boiadas, cansativa, jejuado de mulher, chegava em cidade farta, e podia procurar o centro, o dôce da vida — aquelas casas. Os dias antes, do alto dos caminhos, e a gente só pensava naquilo, para outra coisa homem não tinha ideia. Montes Claros! Casas mesmo de luxo, já sabidas, os cabarés: um paraíso de Deus, o pasto e a aguada do boiadeiro — o arrieiro Jorge dizia. As moças bonitas, aquela roda de mulheres de toda parecença, de toda idade, meninas até de quatorze anos, se duvidar de menos. Meninas despachadas. — “Vai bebendo, eu pago...” Na Rua dos Patos, em Montes Claros. Todo o mundo se encontrava. Até boiadeiros ricos, homens de trato. Uma vez, estava lá o sr. Goberaldo, chefe político: — “Vim também, Soropita. Quando a gente está assim em estrada, todo santo é ora-pro-nóbis...” Tocavam música, se endançava. A prumo de chegado, e cumprido o trivial de obrigação, Soropita ardia de ir. Sabendo que podia passar muitos dias na cidade, primeiro molengava um engano de si mesmo: — “Tem tempo, amanhã vou; agora eu sesteio...” Não conseguia. Se abrasava. Mas gostava de ir sozinho, calado disfarçando, pela tarde. Prevenido. Ir de dia, que de noite convinha menos: muito povo vaporado, bêbados — vaqueiros, tropeiros, tangerinos, passadores-de-gado, rapaziada, vagabundos, gente da cidade; povos dos Estados todos. Armavam briga fácil, badernavam. Ao perigoso.
Mas um certo receio Soropita devia também às mulheres, um respeito esquisito, em lei de acanhamento. A lá vinha tanta gente bem-arrumada, com todo luxo, bons trajes caros, sapato novo, gravata fantasia, coisas. Não queria que o achassem caipirado, jambrão. Aí então ele se produzia razão de desculpa: ia greste, não fazia a barba, não mudava roupa — preferia se mostrar assim, por seu querer, senhor de altos farrapos. “...P’ra ver se elas não me querem; é melhor, volto, fico sossegado... ” — se dizia. Por em frente das primeiras casas, ia passando. Ah, elas chamavam. Ele queria ter o ar sério, a cara e jeito curto de um homem ocupado. — “Ô, entra, Bem. Chega aqui, me escolhe. Vem gozar a gente...” Ele se chegava, delongo, com rodeio, meio no modo de um boi arriboso. Era uma dúvida pesada, uma vergonha o enrolando, quase triste, um emperro: aquelas mulheres regiam ali, no forte delas, sua segura querência, não tinham temor nenhum, legítimas num amontoo de poder, e ele se apequenava; mulheres sensatas, terríveis. Então, fazia um esforço seco, falava de arranco, se subia: — “Tenho tempo hoje não, moça. Não perca seus agrados...” “— Não perco, não, Bem. Vem ver o escondido. Exp’rimenta, que tu gosta: eu sou uma novilhinha mansa de curral. Não vou esperdiçar um homem como você...” Ele ainda se escorava, meio provocado, meio incerto: — “É deveras, menina! Você quer se encostar por riba de uma poeira destas?! Tou sujo, tou suado... Vim amontando burro...” Mas já a moça se agarrava, de abraço, ia-o puxando, para o quarto. O corpo dele todo se amornava grande, sabia só de seu sangue mesmo bater, nada ouvia, não via. Lá a dentro de portas, se empeava um pouco, cismado outra vez, precalço. Ainda bem que a mulher tinha muita prática, acendia cigarro, pedia licença para mandar trazer bebida, indagava se a boiada tinha vindo com transtorno ou com vantagem, encorajava-o com um engambelo mimoso, e de repente já estava solta, nuinha como uma criança, até queria ajudar a ele fazer o mesmo. De fim, ia ficando avontadinho, sem vexame nenhum de pressa, tomando tento miúdo em tudo, apreciando de olhos abertos o fino da vida, poupando o bom para durar bem, se consentia. Umas mulheres eram melhores, contentamento dobrado. Que encontrasse de todas a melhor, e tirava-a dali, se ela gostasse, levar, casar, mesmo isso, se para a poder guardar tanto preciso fosse — garupa e laço, certo a certo.
Um dia, sem saber os hajas, não pôde, não podia, afracara, se desmerecendo. Mulher perguntou se ele queria beber gol, se doen-te estava. Não que não. Faziam rumor, noutro quarto. Essa mulher tinha uma navalha. Soropita sem momento se escapava da cama, pressurado, foi-se vestindo. A mulher era até bonita, vistosa, se lembrava: um tim de ruiva, clara, com fino de sardas, salmilhada de sardas até no verde dos olhos, pingadinhos-de-mosquito de ferrugem, folha de jatobá. Revirou, ojerizada: — “Tu pode me desprezar? A grama que burro não comer, não presta mesmo p’ra gado nenhum. Mas tu acha que eu estou velha?! Muito engano: mulher só fica velha é da cintura para cima...” Som nem tom, ele meteu a mão na algibeira e pagou, mais do que o preço devido, ela não queria aceitar. Saíu desguardado, labasco, lá demorara menos que passarinho em árvore seca. A lanços, até hoje lhe fazia mal, o nome que aquela mulher disse, xingou aquilo como um rogo de praga. Na beira do Espírito-Santo, não longe do Ão, vivia um pobre de um assim, o senhor Quincôrno — ainda no viço da idade, mas sorvada sua força de homem, privo do prazer da vida. A mulher desse vadiava com muitos, perdera o preceito: — “Respeitar? Ele não dá café nem dôce...” — era o que ela demostrava do marido. — “Debaixo de cangalha, não se põe baixeiro...” O triste seo Quincôrno não esbarrava de tomar meizinhas, na esperança. Não resignava. Tomava pó de bico de picapau torrado, na cachaça, chá de membro de coatí, ou infuso, chá de raiz de verga-tesa — coisas de um nunca precisar, deus-livre-guarde. Mal a mal, com Doralda, uma vez, também tinha acontecido — felizmente foi só algum descaído de saúde, passageiro —; e foi um trago de sofrimentos. Tinha não podido, não, leso, leso, e forcejava por mandar em si, um frio que o molhava, chorava quase, tascava os freios. Doralda, bôazinha, dizia que às vezes era mesmo assim, não tinha importância, que nenhum homem não estava livre de padecer um dissabor desse, momentão; passava as mãos nele, carinhosa, pegava nele, Soropita, como se brinca. Mas ele não aceitava de ficar ali, fechando os olhos, num aporreado inteiro, pavoroso fosse mandraca, podia durar sempre assim, mas então ele suicidava; e sobre surdo passava o pensamento daqueles homens, no Brejo-do-Amparo, aqueles valentões, e os outros — ele não queria o reino dos amargos, o passado nenhum, o erro de um erro de um erro. Não queria, porque suportava. Já de manhã, no seguinte, ocultando caçou jeito de aprender a respeito daquelas matérias que se tomavam: bico de picapau, verga de coatí, catuaba — tudo o que era duro, rijo, levantado e renitente, isso carregava virtude. Melhor de todas, a verga-tesa: aquela plantinha rasteira do cerrado, de folhas miudinhas, estreitinhas, verde-escuro quase pretas, mostrava de Deus sua boa validade — podia a gente querer dobrar, amassar, diminuir, como se fizesse, que ela repulava sempre e voltava a se ser, mandante. Não precisou. A já na outra noite, ele se prezava de tudo, são de aço, aquela felicidade. Só muitos meses, adiante, a quebra de moleza quis voltar, mas que não foi grave. Ao que ele teve, para se salvar, no instante, a ideia de invenção de imaginar e lembrar as coisas impossíveis, mundo delas; e Doralda, a língua, arrepios no pescoço dele, nas orêlhas, como ela sabia — muito ditosamente que tudo se passou. A partir dali, nunca teve mais nenhum rebate. Precisava de tomar cassinga não; homem era homem até por demais, o que a Deus agradecia. Se não, por que e para que vivia um? Tudo no diário disformava aborrecido e espalhado, sujo, triste, trabalhos e cuidados, desgraceiras, e medo de tanta surpresa má, tudo virava um cansaço. Até que homem se recomeçava junto com mulher, força de fôgo tornando a reunir seus pedaços, o em-deus. Depois, se estava retranquilo, não carecia de pensar mais em demônios de caretas, nem no Carcará, não tinha culpa — na topada não se mira o brabo da rês, só se olha a ponta da vara. — “Mais ligeiro, Caboclim, vamos.”
De agora, feliz de anjos de ouro no casamento, com Doralda, por tudo e em tudo a melhor companheira, ele nem era capaz de querer precisar de voltar a uma casa de bordel, aquilo se passara num longelonge. Mas, o manso de desdobrar memória — o regozo de desfiar fino ao fim o que um tempo ele tinha tido — isso podia, em seu escondido cada um reina; prazer de sombra. Que fora bom, quem fora. — “Você vai, Soropita?” — “Vou, demais.” Soropita viajava como num dormido, a mão velha na rédea, mas que nem se fosse a mão de um outro. As laranjeiras-do-campo aviavam a choco seu odor magoado; depois as cagaiteiras — o cheiro assaz alegre, que se sentia mais na boca, no excelente; depois a flôr do meloso, animal e suave: e afa que esses perfumes sucessivos indicavam que tinham atravessado o cerradão, seguido de cerrado ralo e de uma pastagem; mas Soropita nem escutava a tino as pisadas de Caboclim, mãos no caminho —: agora o mundo de fora lhe vinha filtrado sorrateiro, furtivo, só em seus simples riscos de existível os ruídos e cheiros agrestes entravam para a alma de seu recordar.
Tinha havido, principal, uma rapariga bonita, clara, com os olhos que riam sozinhos — a boca não ria, uma boquinha grande, dadivada de vermelha — o afilado do nariz, um pingo de pontozinho preto por cima de um dos cantos da boca; essa se requebrava, talo de azedim, boneca de cinturinha; parecia que tinha derramado um vidro inteiro de perfume em si, encharcado no vestido, em seus cabelos: cabelo muito preto, muito liso — ela ficava ainda mais alva.
Cem e cento são as coisas que a gente tem de aprender, o que o mundo descobre e essas mulheres sabem; às vezes, de começo, perturbam, um homem simples se espantava. Aquela rapariguinha bonita, tão nova assim, e nem se dava ao respeito, tinha nôjo de nada, vinha trançando cócegas, afogo de bezerro buscando mãe, sua boquinha vermelha, sua língua pontuda. Soropita se esquivava — teve até receio. — “Você é bobo, Bem?” — ela rira. Vem daí, um dia — Soropita pensava baixinho, seus ombros recuavam, a cova das costas estremecia —... Sua recordação eram águas arrastadas. Com Doralda, uma noite, ele falou naquilo, na Rapariguinha bonita de pintinha preta por cima de canto da boca; nem sabia por que tinha falado, sem intenção razoável, mesmo sem querer falar, pois nunca ele conversava nos agravos de seus passados. Doralda escutou; de certo ela pensou que ele queria sem coragem de querer, e não respondeu com as palavras: gateava, sacudia os cabelos, sumiu o rosto, dito e feito a rapariguinha bonita; ele concordava corpo, se arrijava num suspenso, suas forças rebentavam. Tudo o que muda a vida vem quieto no escuro, sem preparos de avisar. Se deitavam na cama, luz apagou-se. Nesse tanto, não falavam. Doralda gostava dele, sincera. Todos no Ão, no Andrequicé, até na beira do Espírito-Santo, o respeitavam. — “Eles têm medo de você, Bem...” — Doralda afirmando. Mas Soropita sabia nisso só um carinho de o animar, quando ele mostrava qualquer insistido de incerteza.
Nem precisava de ter mais incerteza. Como que cerrando os olhos quase em camoeca, Soropita se entregava: repassava na cabeça, quadros morosos, o vivo que viera inventando e afeiçoando, aos poucos, naquelas viagens entre o Ão e o Andrequicé e o Ão, e que tomava, sobre vez, o confêcho, o enredo, o encerro, o encorpo, mais verdade que o de uma estória muito relida e decorada. Seu segredo. Nem Doralda nunca o saberia; mesmo quando ele invocava aqueles pensamentos perto. Dela, dele, da vida que separados tinham levado, nisso não tocavam, nem a solto fio — o sapo, na muda, come a pele velha. Era como se não houvesse havido um princípio, ou se em comum para sempre tivessem combinado de o esquecer. Também ele, por sim, não tinha apetites de voltar a ser boiadeiro andejo, nanja de retornar àquelas mulheres, à escortação naquelas casas, nas cidades, por esse bom Norte. Em sério, só sentia falta de Doralda, que o esperava, simples, muito sua, fora de toda desordem, repousada. Mas imaginar o que imaginava era um chupo forte, ardendo de então, como o que nunca se deve fazer. E em que só ele tinha poder: de sensim, se largava — um coleio de serras, verde sol azul, o longíssimo de outras paisagens, sombras de nuvens, frias águas. Mas uma representação certa, palpitando em todos seus gomos; e mais insinuante que um riacho de mata. A agulha fixa, se revolvendo em surdina nos sulcos. Soropita estava numa casa de mulheres.
Soropita estava no quarto, com uma mulher — rapariga de claridades, com lisos pretos cabelos, a pinta no rosto, olhos verdes ou marrons, e covinha no queixo e risada um pouco rouca — e que de verdade essa rapariga nunca tinha havido, só ele é que a tinha inventado. Casa de luxo, sem perigo nenhum, um sossego que não se atravessava. A rapariga se sentava nos joelhos dele, com namorice, faceirice: bebia, fumava, ria, beijava. O quarto era de paredes fortes, tranca na porta, ele tinha a chave na algibeira. A rapariga, da primeira vez, pegava na mão dele, via a aliança, brincava de a rodar. Piscolha, perguntava: — “Bem, tu é sério casado? Com quem?...” Ele fazia com a cabeça que sim, vexado. Gostava de principiar estando assim, sem nem ânimo para alto responder, sem encarar a rapariga; desse modo ouvia melhor real sua voz, respirava o poder de perfume que ela usava. Mas a rapariga o apertava, queria porque queria: — “Qual é a graça dela, de tua mulher? Fala! Divulga p’ra mim quem ela é...” E ele ia respondendo, tinha de dar respostas; homem, aquela rapariga sabia pôr a dizer. De então, a safada surpresa, o que ela exclamava: — “Sucena? A Sucena? Mas, essa?! Ah, pois conheço, Bem. Conheço, inteira: é da gandaia! A pois, vou te contar...” Arre de bandalha, a depravada, essa rapariga. Tinha sonsonete, tinha zombeta, tinha mengo, tinha momo. Relatava da vida de Doralda, contava de Doralda, devagar, coisinhas coisas, orgias e proezas. Expunha, rindo ou em siso, tomando calor. Às vezes se fingia de vergonhosa, mas era para logo depois ter impulso para falar mais fundo, mais certo. Perguntava, perguntava, queria saber de tudo agora, formava comparação. Aquelas palavras, debochadas, aqueles nomes, com pico de queimo, de sacudir o corpo; ele tinha de apartar os olhos, num arrefrio.
Soropita pausava. Soerguia a fantasia vibrada, demorava-a próprio uma má-saudade, um resvício. Se estirando com a rapariga, abraçados, falavam em Doralda, ele revia Doralda, em intensos. Só por um momento, murchava-lhe o manter acesa a visão em carne, arriava-se na esfalfa, o prolongamento comprava esforço. Mas a rapariga descrevia o assunto daquelas Mulheres, o mundo de belas coisas que se passam num bordel, a nova vida delas — mulheres assim leves assim, dessoltas, sem agarro de família, sem mistura com as necessidades dos dias, sem os trabalhos nem dificuldades: eram que nem pássaros de variado canto e muitas cores, que a gente está sempre no poder de ir encontrando, sem mais, um depois do outro, nas altas árvores do mato, no perdido coração do mundo. Se a gente quisesse, podia pôr nomes distraídos, elas estavam na alegria, esperando: — E você? — Eu sou Naninda... — Eu? Marlice... Lulilú, Da-Piaba, Menina-de-Todos... Dianinha, Maria-Dengosa... Sucena...
Sua delícia. Soropita reinava no quarto, com a rapariga, mais-viviam, de si variavam. Soropita sabia não-ser: intimava o escabro de outras figuras, o desenho do entremeado se enriquecia de absurdas liberdades. E seu corpo respondia ao violento instigo, subia àquele espumar grosso de pensamentos. Agora, ali naquela casa de luxo, estava era com Doralda. Ela era dele, só dele. Levava o sabonete cheiroso na capanga. Era bom, gostar dela assim, com aquela velhice de alma, com o coração preguiçoso. O cavalo se apressava, se sentindo sem lombo, trotava um trabêjo incômodo. Soropita descochilava. Sim, sim, chocalhava o freio, em tilinto — a barbela com frouxura. Piavam uns anús-pretos. Repunha-se Caboclim submisso, na marcha estradeira. Passavam pela Tapera da Sinhana Roxa: nem era um retiro — só os restos de uma casa-grande virando monte de capim, à sombra de gameleiras; e um ranchinho em mau estado, mais recuado. De adiante, vinha um tropel de barulho, o trupe de vários cavalos.
De a de-meio, Soropita tirou o cavalo, rèsvés, quase oculto com o arvoredo. Se outro trilho houvesse, ele atalhava, ver e não ser visto por aquela gente, nunca se sabe; mas não havia tempo, despontava na curva um cavaleiro, um vaqueiro: montava um cavalinho queimado, vaqueiro moço — não conhecia; e os outros, grupo de quatro, entre encourados e empanados; o de camisa amarela cáqui rompia em direto, mirando, parecia até um vulto conhecido: — “Que mal pergunto?”
Soropita recuara o cavalo. O outro sorria um riso. Abriu os braços.
— É deveras! Surupita!?
— É o Dalberto...
Dalberto se chegava, estendendo a mão; e Soropita a seu encontro avançava demais a mão, e apertava a do outro, distante de si, demorado. O Dalberto — sacudido, mais trigueiro. Arma grande, na cintura. Uma flôr cravina enfeitava a testeira de sua mula rata. O Dalberto era uma bôa recordação, de testemunhos, de grandes passagens; parecia que dele nunca tinha deixado de estar perto. Amigo é: poucos, e com fé e escôlha, um parente que se encontrava. Um bom amigo vale mais do que uma bôa carabina. Se aproximavam, num meio abraço, as mãos se palmeando as costas.
— Diacho, um! Com’ passou, Surupita... A gente vir se ver, trasmeio de tanto tempo, sem espera nenhuma, aqui neste acosto fora de todo rumo costumado...
O preto, com espingarda e capanga, remexia: tinha ali uma codorna, sapecada de pólvora, preta e sangrenta; Soropita desviou o olhar. Mas vigiava-os, de sosla: os em volta, mais afastados, fechando meia roda. O rapaz no cavalinho queimado, com chapéu-de-couro redondo, do feitio de Carinhanha. Um de roupa clara. Um de terno de couro, novo, dos comprados em Montes Claros. Gente de paz, em seu serviço, mas gente bem-armada. Dalberto dava lugar para esses, na menção de apresentação: — “É o pessoal, parte dos companheiros: Rufino, o Iládio, Pe’-Pereira; José Mendes você deve de conhecer?” “— A meio, lembrado me parece...” (Aquele tinha sido puxador da madrinha e do cargueiro, na comitiva do Itelvim; homem dizedor, sujeito abelhudo.) “— Com’ passou?” “— Com’ passou?” “— Com’ passou?” Espingarda de dois canos. O preto tinha espatifado a codorniz com chumbo grosso. Pe’-Pereira carregava um revólver enorme — um 44 comum, fora de uso, devia de ser, desses mais para dar tamanho, ainda que fosse porcaria... (O Robeval Gaúcho tinha um, mas tinha também o esmite, pequeno, que era o de potências: — “Siô, com este eu mato, siô! Com este daqui, eu enfio o subdelegado dentro dele...”) Não descavalgavam. Catinga do preto, e da codorniz esrasgalhada, trescalavam, a léguas. Dalberto tirava cigarro da algibeira. — “Ah, você quase não fuma... Se alembra do Nhônho?... ” (O Nhônho era o bom velhote do Serro, companheiro amigo deles, numas duas ou três boiadas. Enrolava cada cigarro despropositado de comprido e de grosso, só fumo goiano, muito bom de primeira, e palha especial. Soropita não obedecia ao vício, mas gostava de estar perto, sentir o azul das baforadas: — “A fumaça do pito do Nhônho adoça o ar p’r’ a gente...” — observava.) O Dalberto remoçava tudo. Perguntava o que era o antigo e o novo. Achava Soropita repastado, garboso, moderno, sem segundas mudanças. — “Ontem eu fiquei sabendo que você está sediado aqui, Surupita só tem um, ora, ora. Me contaram que você tinha passado, que retornava hoje do Andrequicé. Vim p’r’ a estrada...” Estavam, havia uma semana: “...arranchados no — como eles dizem — no Azêdo: um retirinho mesmo aqui...” “— Sei adonde: antes do arame fechar, o arame do Doutor Adelfonso, com o do Suardo... eles fazem um bêco...” “— Bom, você é morador... Estamos em comitiva curta, por conta de Seo Remígio Bianôr. A gente estamos no diário de uma folga besta, esperando as ordens. Quem manda e paga, é que guarda ou que estraga... P’ra ir receber um gado, por aí arriba. Seo Remígio Bianôr ainda está no Corinto, no Curvelo tem uma exposição de animais. Só de amanhã a dois dias é que vai vir, de jipes ou no caminhão de creme.”
Dalberto depunha o mesmo de sempre, o brando aprazível na fala, esse modo sincero no olhar, nos olhos grandes; a gente ia sentindo dele um arêjo de bondade, um alastro de sossego. — “Ora, ora, Surupita, a gente vir se encontrar, fim de tantos anos, sem combino algum, até sem notícia... Você então está assistindo por aqui, neste começo de Gerais? Imagina...” “— No Ão...” “— Eu sei.” “— Pois então. Daqui lá, uma légua, p’ra dentro. Leguinha: é de cochicho...” “— A ver. Que não seja. Alegria minha é tanta, que o primeiro gosto era ir logo até lá, com você, agorinha...” “— A bom. Vamos.” “— Não é dúvida? Vou, demais. Você me dá janta, posso voltar por dentro da noite, a lua está saindo lá p’las dez. Não empalho?” Dalberto não perdera o modo de dar um tapa na rédea. A mula rata era bôa, movia com rabo forte, arrancava bem, punha passo com avanço. Aquele preto Iládio, com a espingarda, golias de bruto, dava um risadão, ficava para trás, em bando com os outros. Soropita se desgostava, não podia deixar’de, se eles todos também viessem. Dalberto parecia que adivinhava: — “Os companheiros vêm com a gente até no cruzar da carroçável... Voltam p’ra o Azedo...” Que se chegassem, viessem, tinha jantar para todos... — Soropita convidava, não podia desfazer de si. Agradeciam, Dalberto dizia que p’ra outro dia ficava. Soropita não tinha por que se reprovar: Dalberto, sim, de si era um companheiro seguro, nem mesmo só por ser seu amigo, sempre lembrado. Mas não podia ter satisfação em levar o resto do pessoal, até ao Ão, para dentro de sua casa. Aquele preto Iládio, o José Mendes... Todos vinham vindo cavalgando por depois, a regra de distância. Nem isso era sofrível; preferia que tocassem adiante. Em ver, deviam de estar agora reparando no volume de suas armas, falando dele. Soropita não podia ouvir. Mas já de começo relanceara entre eles o alvoroço, o mutemute de uma conversinha acautelada.
(—“Pss! Pereira...” “— ...com o beiço branco, Zé Mendes?” “— Espera, seô, espera, Iládio. Vocês sabem quem aquele é?: Surrupita!” “— Surrupita?! Gimaría! Sur-ru-pi-ta!...” “— Surrupita!” “— Surrupita?” “— Ele, o diabo dele, santo Deus: quem é que a gente vem topar aqui neste lugar.” “ — É o Surrupita, Rufino, o que matou Antônio Riachão e o Dendengo... O que matou João Carcará!” “— Ôx’, Virgem! Pisei chão quente...” “— É machacá...” “— Já ouvi falar. Ah, uíxe, esse não esperdiça uma legítima-defesa!” “— O Pereira sabe...” “— Ara, se sei. Matou o Mamaluco, também. Respondeu júri no Rio Pardo...” “— Isso foi de outra, ferimentos leves...” “— E não foi pela morte do Mamaluco. O Mamaluco era cunhado do Dendengo, morreu com ele, junto, no fato... Mas Surrupita respondeu mais outros júris, em três comarcas. De quase todas as vezes, saíu absolvido...”)
O Dalberto de começo nem podia bem emparelhar com Soropita: a mula rata se espassava com ligeireza querida, vencendo o meio da estrada. A camisa fofa do rapaz se enfunava. A besta levantava bôas orêlhas, e seu esquipado era um z’zzuum... Caboclim, mesmo upa no afã do regresso, tinha de seguí-la. Dalberto se voltava, brincando mão nas franjas alaranjadas do pelego:
— Ah, hem, Surupita? Bom que isto é outra coisa, que aquela desgraça de passo em passo, a munha de se acompanhar boiada? Aquelas boiadas só de touros zebús, eles dormindo andando no vagaroso...
— É. A tourama se recebia em Pirapora... Vinham embarcados no trem-de-ferro.
— Uai, Surupita, isto aqui são campos bons...
Soropita volvia a cabeça, virava-se de transcosto, vigiando os quatro que vinham, agora mais atrasados. Sabia, sabia que estavam falando dele; sabia-o, como coisa de pega e pesa. E o firo daquilo o irritava.
(— “Surrupita, eta, ele empina! Quem vê e vê, assim não diz o relance desse homem.” “— Teve também um jagunço, que ele arrebentou com uma bala no meio dos dois olhos, na Extrema. Aí, Surrupita pegou condenação — ano e meio. Mas nem chegou a cumprir. Foi indultado.” “— Não, defesa apelou: saíu livre, no segundo. Falavam até que ele era mandado do Governo, p’ra acabar com os valentões daí do Norte. Que um sabe: por regra, Surrupita só liquidou cabras de fama, só faleceu valentões arrespeitados...” “— Também, qualquer um que matasse João Carcará e Antônio Riachão mais o Dendengo, tinha de sair livre, que estava matando em legítima defesa...” “— Foi não. Um chamado Enjo viu, p’la janela aberta, da banda de fora. Só que viu e se escapou no mundo, não gostava de servir de testemunha... Foi no Brejo-do-Amparo, adiante da Januária. Ninguém não conhecia esse Surrupita, chegado com tropa, estava sentado, num canto, comendo sua refeição. Diz que bem sossegado, devia de estar honesto com bôa fome. Na pensão, numa sala-de-jantar grande, dando p’r’ a rua. Longe dele, noutra mêsa, Antônio Riachão estava com dois de seus homens, almoçando. Gente bruta... De repente, veio o rebuliz: entrou o Dendengo, feito pé-de-vento, com acompanhamento do Mamaluco e mais uns três — vinham feios, p’ra intimar discussão com o Antônio Riachão, e matar com urgência. A revira ia ser de onças comedeiras. Mas nem não tiveram tempo: o Surrupita, de lá do canto recanto, sem dizer mãe ou pai, sem tosse nem nem negaça, deu relâmpago e falou fôgo. Foi no cano-curto. Berrou bala em todo o mundo — munição ele tinha! Caíu morto o Dendengo, o Antônio Riachão, o Mamaluco, um dos dois que estavam com Antônio Riachão, um outro dos companheiros do Dendengo. Inda houve feridos. Surrupita não erra tiro. Antônio Riachão se enrolo em debaixo de toalha, deu o couro às varas mordendo o pé da mesa. Cinco p’r’ o bom cemitério! Surrupita saíu também levado carregado, foi p’r’ a santa-casa, tiveram de fazer operação, tratar, antes que estivesse em estado de comparecer em tribunal...” “— Então, ele é pessoa que dá acesso?” “— É não. O que depois ele endeclarou, foi que aqueles todos eram homens terríveis, já estavam em mão de guerra lá dentro da sala, iam p’ra o afiafim de faca e tiroteio à tonta, e que ele, Surrupita, corria sérios perigos, ali encantoado: não teve tempo de espera, abriu caminho seguro, p’ra poder escapulir... Mas o povo da Januária e São Francisco, muitas pessoas, reuniram, achavam que ele tinha feito uma limpa boa, mesmo; pagaram advogado p’ra ele, até...” “— Às vez, quem sabe, ele é dôido-de-lua?” “— Diz que é frio, feito casca de abób’ra-d’água...” “— Dôido não é. E é até acomodado, correto. Tem malda, mas não é carranco. O que ele tem é que tem pressa demais — tem paciência nenhuma: não gosta de faca. Cheirou a briga possível, rompeu algum brabo com ar de fazer roda de perigo; e aquilo ele principêia logo, não retarda: dá nas armas. Pode até aturar dissabor, mas somente que seja de homem fraco ou desarmado. Agora: não entesta com ele, não facilita! Quem relar, encalcar, beliscou cauda de cobra...” “— E o João Carcará?” “— Diz que foi no Santo Hipólito, no ramal de Diamantina. Assim estavam numa roda, boiadeiros, vaqueiros, tais. João Carcará chegou, ele veio rosnado, leão-leão... João Carcará gostava de insultar, tinha a mania — chegou, xingou a mãe de um rapazinho, que estava. Parece que ele deu também alguma indireta, que podia servir de aplicar p’ra o Surrupita. E que mexeu na cintura, na garrucha — uns dizem que nem conseguiu tirar p’ra fora, ou mal chegou a tirar — só não sei. Surrupita foi na máuser: arrependeu ele logo daquilo! João Carcará, pelos tiros que levou, deve de ter morrido umas três vezes emendadas... Surrupita estava branco feito raiva de sapo, foi afinando de ódio, e num sofôgo. Adeclarou depois que o João Carcará tinha abocado mais primeiro a garrucha nele. Abocou foi uma nenhuma! — se diz...” “— Ei! Ouvi vento de bala!...” “— Amigo do Dalberto... Se viu, se vê. Não sei como se pode ser amigo ou parceiro de sonso-tigre. Como meu pai me dizia, de uns, menos assim: — Meu filho, não deixa a sombra dele se encostar na tua!...”)
Soropita indicou a Dalberto que esperassem, e arredava o cavalo. Já não podia: enquanto aqueles viessem vindo depois deles, nem conseguia ter tento em conversa. Era como se o encostassem. Dalberto levantou mão, fez um sinal. Também, o galho para o Azêdo era ali adiante. Os outros entenderam, já vieram de corrimaça, passavam embolados, num meio-galope, que nem tropa de eguada. Ainda gritaram, se despedindo. Aquele negro Iládio se sacudindo as costas, preto enorme, brutão, espingarda transpassada. Com pouco, dentro da poeira, dobravam. Só se viam as cabeças, por cima da barra do cerrado fino. E sumiram. Naquele ponto, havia algum tempo, por uma estrada quase impossível, tinha chegado, enfeitado com ramagens de árvores e flores, o primeiro caminhão que foi até à beira do rio; mas, mesmo depois de muitas horas que ele tinha passado, os cachorros ignorantes vinham farejar demorado aquele rastro, que não entendiam existir, deixado pelas rodas; Soropita tinha visto, quando alguns uivavam.
Agora o Dalberto mesmo parecia mais presente, melhor em suas asas. Retinha perto de Soropita a mula rata, podiam ir a par. Qualquer modo, mais de cinco anos fazia, que não se encontravam. Se alembravam, tinham de saltar para trás tanto esse espaço, precisão de reconferir. Derradeiras vezes, vinham trazendo aquela zebuzama, só de touros do Triângulo — que iam sendo entregues devendidos, p’r’ aqui e p’r’ali, comercial. Junto com os zebús, traziam também burrada, burros de bôa cria, de Lagôa Dourada, Itabira de Mato Dentro; chegavam embarcados, em Cordisburgo... — “Foi em 32?”
— 32 e 33, 34, 35... Mesmo depois... Vai tempo. Adeus, zebuada!
— Eh, Surupita, touros uns trezentos... Bom era o gyr pintado, a melhor caixa de carne. O nelore de orêlha miúda era bravo, duro, com um ameaço de poder: não respeitava fecho... O guzerá era o maior, mais dono. Bravo, mesmo, não; mas estranhador, principal. Estranhador — é isso... Pirapora, Vargem da Palma, Jequitaí, Água Bôa...
— Espera: ...Pirapora — Buriti das Mulatas — Vargem da Palma — Lavadinho, fazenda — Fazenda do Cotovelo...
Para Soropita, tudo tinha de ser falado na forma, os pontos de trajeto faziam uma regra, decorada por uma vez. Não que gostasse, de-lembrança, daqueles lugares, simples etapas; mas era uma ordem de costume, evitava se estar tomando cabeça em escolher ou resolver o quê.
— ...Brejo das Almas — Dois Riachos — Barrocão — Fazenda da Piteira — Fazenda Jacaré...
— Onde se atravessa a Serra Mineira...
— ...Fazenda da Vacaria — Fruta de Leite...
— Um comercinho, no alto de uma serra!
— ...Salinas — Fazenda do Bananal — Cachoeira do Pajeú...
— Bom arraial, Surupita. Namorei, lá...
— ...Fortaleza — Estiva...
— Isso era uma fazenda.
— ...São Miguel de Jequitinhonha — Joaíma...
— Grande volta que se dava, ora, o diacho...
— ...Jacinto...
— Arraialzinho, comercinho!
— ...Salto Grande...
— Arraial. A pontezinha era a divisa com o Estado da Bahia...
Depois, já dentro da Bahia, esbarravam em Itabuna: — “Lugar feio, está sempre chuvoso, chuvoso no diário...” Vez ou vez, porém, chegavam até no Caetité: a fresca e temperada, no fim de um grotão formoso, o chão claro, a cidade melhor...
— Mas você, Dalberto, ainda vence nessa lida? É um traquejo!
— É. Mais uns tempos. Eu gosto e não gosto. Mas a gente diverte...
Um podia estimar o Dalberto, pois podia. Menos que fosse, por ser tão diferente dele, Soropita. Em tudo. Podiam chupar a mesma laranja, o gosto que cada um tirasse era diferente. Até as mulheres que escolhiam eram sempre diversas, cada um tinha sua preferência apartada. Dalberto podia ser um irmão seu, mais moço. Mesmo no ver o trivial da vida, eles descombinavam, amigos. Dalberto não tinha malícia, nem fome de tudo — de conhecer por dentro, — fome do miolo todo, do bagaço, da última gota de caldo.
— Desde estes dois anos, tenho pensado em guardar algum dinheiro... O diabo comigo é o jogo...
Dalberto falara com um riso apressante, sabia que o jogo Soropita reprovava, não gostava de malparar. E, de inesperado, deteve a mula. — “Vou dar p’ra você, ia me esquecendo. Você aprecêia uma boa arma...” Era um revólver 41, em capa. — “Ganhei, por nove partidas, de um gaúcho, da xarqueada do Lé. O nome aí, de Quaraím, é o de um lugar na terra dele — o revólver é reiúno, foi dos da Polícia de lá. Aqui esta caixa de balas; no mais, munição dessa não se encontra difícil, é igual...” Olhava para Soropita, querendo que ele com o oferecido se alegrasse. Soropita era o amigo que ele mais prezara: corajoso como um lufo de ventania, e calado, calado. Perto dele, sempre tinha o surdo palpite de que podia aprender alguma coisa.
E Soropita, a bem dizer, salvara a vida dele, na fúria daquela vaca achada, perto da Pedra Redonda, onde nasce o Rio Jequitinhonha. Quando ele Dalberto estava em perigo verdadeiro, Soropita pulou e se atravessou, sem vara em mão, foi até derrubado pela vaca. Felizmente não teve nada, só rasgou o paletó. Mas o resto do dia Soropita tinha passado de cama, tremia, tinha até febre.
Soropita sabia que todo revólver tem senha em sua história, marcado quase como pessôa. Só o Dalberto costumava inventar dessas lembranças de bom agrado. Dalberto, que agora o olhava com aqueles olhos muito abertos, o modo rompido e fingindo de aspro, de se vexar, aquela simpatia de cachorro. Mas que, quando lhe agradeceu, depressa desconversou:
— Ora, se diz, que: quem nasceu em debaixo do banco, nunca chega a se sentar. Mas agora eu melhorei — ah sou capataz de comitiva...
— Bom. Ainda vão vendendo zebú?
— Quase não. O bicho morreu de preço, os zês...
O Dalberto não abria estima por esses, não encostava o ouvido nos zebús, não entendia o encoberto deles. Soropita se esquecia no quieto movimento daquela malabarada pesada, quantidade de touros-das-índias, melhores no mais fácil de se conduzir do que uma boiada comum, porque pareciam uns meninos grandes, muito arrimados uns nos outros, reunidos tão em destino de mansos, vagarosos, num delongo, como nuvens — davam pena. Não se queixavam, não diziam diferenças, não vinham à beirada de si, nunca; aguentavam qualquer carecer. Semelho de que eles sabiam que, em algum tempo, tiveram de perder a herança de alguma coisa; mas podiam passar cobertos de flores. Em rota, sob sol, sede e caminhadas, muitas marchas, acompanhavam a gente, no mesmo moroso, no mesmo consolo, o quente de seus corpos, o cheiro grosso, inteiro, maior que a inocência. Azulêgos, baios, cor-de-fumaça, chitas, prateados, os chifres pretos, os cascos pretos — balançando os cupins, as largas barbelas, os umbigos pendurados; abanando as enormes orêlhas sem cabimento, levantando sempre as cabeças alteadas, por poderem espiar a gente de frente só por cima dos focinhos pretos; olhando desse jeito com os olhos entortados, ora adormecidos, deixados no cochilo de um aceitamento, mas esses olhos com um luarzinho cravado, luz que vinha de um longe adonde ninguém podia voltar. No meio deles, no passo, às vezes a gente se perdia, cismava até um medo, um respeito de tudo imenso — o bafo curto, os fungamentos, o urro tossido, e raro o berro triste, que não é berro; o silêncio entre si, como se falavam: tão corpulentos, tão forçosos, podiam, se quisessem, derrubar tudo. E bastava o segredo de uma palavra, a mão da gente escorregava a bom na pele deles, podia-se puxar o couro, dobrado de mole, como farinhado de tal que um unto, e macio, macio, — gemiam para dentro, só o sussurro de uma abelheira muito longe; e obedeciam a mando de homem, parecia que Deus tinha dado a eles, para sempre, uma benção de mor juízo. A gente se despedia deles, quando, de tarde, o gado viajado ia pastar. Comiam pouco; pouco dormiam. E ainda no escuro, no descambar da noite, estavam lá deitados, calados juntos, todos espiando para um lado só, esperando o romper da aurora. Esperavam sem esperanças.
— Surupita, você logo não me reconheceu?
— Mais foi pela voz, que eu reconheci...
— É, a voz. Voz, é engraçado, a estória do cego... Te contei, do cego? Pois eu estava no Grão-Mogol, o cego passou, pedindo esmolas, ele recitava uns versos, desses que só os cegos é que sabem. Dinheiro trocado eu não tinha, nem mantimento. Tinha um par de botinas, peguei e dei. Não falei com ele nada, de palavras nem umas dez. Agora, escuta: tempo depois de mais de dois anos, e longe de lá, no Rio Manso, quase perto de Diamantina — estavam fazendo uma festa de rua — e eu vejo: quem vinha andando? O cego. Era o mesmo, vi logo, com o cachorro preto-e-branco, e a viola pequena, aquele cego dos pés compridos, de alpercatas, com uma calça preta estreita no baixo das pernas, apertada demais. Só que dessa vez ele tinha outro menino-guia. E o que ele fraseava era o seguinte:
“Com prendas e bem fazendas 
e mil cruzados de rendas...” 
— ...Então eu cheguei bem na beira dele, dei um dinheiro na salva, e saudei: — “Meu amigo cego, como vão as coisas?” — falei dito, ou no mesmo rumo, só; acho também que ri. E ele, sabe o que ele fez? Ora, até contente, deu um exclamo: — “O homem das botinas! O homem das botinas!...” Ouviu, Surupita? E não é para se dizer?!
— Em certo. Mas você não perguntou a ele?
— Ora, ora. As botinas, ele tinha vendido. E o resto do disparate das rendas de mil cruzados, ele mesmo não sabia. Me ensinou outro, mais faceiro:

“Vi três marrecas nadando 
outras três fazendo renda; 
também vi uma perúa 
caixeirando numa venda...” 

O que Dalberto devia de ter perguntado — como era possível o cego guardar, prender uma pessôa pela voz, em sua cegueira fechada? Aquela voz devia de ser mexer, lá dentro, em muitas trevas, como muitas cobras brilhantes. Se ele podia reconhecer todas, as pessôas que ia encontrando por este mundo? Assim um cego, que não via e tudo sabia, e podia chegar, de repente, apontar com o dedo e gritar: — “Você é Soropita!” Então, por que é que um ficava cego? Deus podia ter botado os cegos no mundo, para vigiarem os que enxergavam. Esses cegos, como os brabos arruaceiros: os valentões, que eram mandados permitido como castigo de todos, para destruir o sensível do bom sossego. Pensar nesses, era como um garfo ringindo no fundo de um prato, raspava os nervos, feito se um estivesse sendo esfolado, aos tantos. Só de se escutar a fala de um valentão, discutindo, desafiando, era vergonha que a gente tinha de guardar no resto da vida, repuxão de gastura.
O Dalberto também devia de estar se pensando. Caboclim e a mula rata se compassavam, lado um do outro, não se sabiam. Às vezes uma das selas rangia. A alegria era o melhor do Dalberto: ria a simples, sua simpatia; assoviava bonito — assovio de tropeiro. De viver, cantava:

“Adeus, cidade de Uberaba, 
divisa de São Mateus! 
Vender boi ficou pecado, 
que será de mim, meu Deus?” 

— Surupita, quanto tempo tu não vai no Montes Claros, nem passa?
— Tempo.
— Ah, isto, sim, Surupita: Montes Claros! As mulheres...
— “Pasto bom e mulher — e o mais, se tiver...”
— Ora, ora, a vida do pobre é: beber, briga e rapariga... A gente viaja padecendo, pois é, pois. Tiro o menos por você, Surupita: para você tudo não parecia tão diabo e tão bobo. P’ra você, passar fome e sede não é nada, você arreséste a tudo que quer. Mas você aprova comigo: só quando se está com mulher é que a gente sente mesmo que está lorde, com todos os perdões... Que é que se está vivendo, mesmo. Afora isso, tudo é poeira e palha, casca miúda. A gente vai indo, caçoando e questionando, agenciando, bazofiando, tendo medo, compra isto, vende aquilo... Como que na gente deram corda. Homem não se pertence. Mas, um chegou, viu mulher, acabou-se o pior. Começa tudo, se tem nova coragem... Léguas andadas, tem as cidades, a gente pousa perto... Mesmo por aí, Surupita, toda parte, lugar menor, a gente se arranja. Eu falo é de mulher provável, usável. Aqui no Norte, muita parda bonita: pedem só “uma nicla de serrinha” — prata e dez-tões, dois-milréis. Mas eu vi que é bom é aquele seu conselho que me deu: de quaresmar, até chegado no ponto de cidade grande. Que como você dizia: que nem cavalo ou burro em viagem, que não pode comer sal — enfraquece muito, dana numa bebeção d’água... Mas, Montes Claros! A já naquele tempo nosso, se alembra? Foi contado, Surupita: 1.600 mulheres na alegria... Se alembra do cabaré do Chico Peeiro? Uma cerveja custava a garrafa dois-milréis... Tantos cabarés, tantas casas: eta, escôlha. Cada um põe sua vela na arandela. Ô fim sem começo, toada boa! As baianinhas, hem? Cada baianinha — você se encostava nela, ela ficava mexendo toda, feito cobra na areia quente... Se lembra?
— Demais. Lugar de primazia...
— Derradeiramente agora, ainda está muito melhorado. Um progresso, como Deus ajuda. Surupita... E uma coisa, não lhe conto...
O Dalberto falava vizinhoso, sereno, não como quem conta desatinadas vantagens, mas como quem agasalha um esvoacim de saudade no covo da palma-da-mão. Vinha e veio, relatava: era a papafina de uma mulher, que ele tinha conhecido. Diziam até ela era filha de uma família muito bôa, e que começou de bem-casada, com um doutor bacharel; e era demais linda, e toda nova, mas resolveu e fugiu, para a vida maior, por de homens muito gostar... Que todos a queriam constantemente, mas mais ela simpatizava era com ele, Dalberto. Tinha uns olhos de fino verde, folha de avenca-rainha, com pestana ramalhuda — bonitas, eram até pestanas de propósito postiças... De um luxo, se via lá, vestidos caros, sapatinhos — ela rebrilhava, desabusada, por cima de tudo, aquilo desprezava, aquilo ficava sendo dela... Bebia pouco. Fumava. Pensava: num instantim, dava cabo de meio maço de cigarros... Dizia: — “Tu beija?” Sabe o que? Os pezinhos dela, as unhas pintadas de vermelho...
Um podia aceitar o Dalberto, até pelo esse jeito trivial de defalar com um amigo o por-meio de suas coisas, expor o vivido escondido. Ele Soropita não fiava esse assolto de se descobrir com ninguém: — a bilha tem pescoço fino, em bilha não se enfia copo. Dalberto, devagarinho, falava. Acendia um cigarro, e falava. Se repetia. Soropita de repente se lembrando do que se contava do em tempos falecido Major Brão — um grande fazendeiro louro, ramo de estrangeiro, que fora dono de enormes. Despropósito de riquezas, terras, gado. Tão tudo de rico, que não carecia de se importar com o que dele falassem. Major Brão vivia adamásio com uma moça, muito branca, muito linda, muito dama, que não tinha vergonha nenhuma. Os dois não tinham. Pelo que saíam, sol da manhã, num cavalo só, assim o Major montado, vestido composto, mas a mulher toda nua, abraçada nele, na garupa. Nua dada, toda viva, formosamente: era para todos verem o que em senhora nunca se pode ver. Isso sobreproduzia, para ela e para ele, o prazer do prazer, as delícias. Até ela se apeava, andava para ser olhada mais nua, assim, em movimentos, passeando aquela alvura em cima da grama verde, na várzea. Ela ia tomar banho, na Lagôa da Laóla, perto de onde morava tanta gente. Se alguém, homem ou mulher, via os dois passando, virava a cara, com medo de Deus, se estremecia. Diz que a moça avistava uma novilha mais bonita, nos pastos, em distância, e desejava: — “Eu quero daquela...” E o Major Brão matava a tiro a novilha, retalhava posta de carne, ali mesmo assavam. Os dois. Ao fim de um tempo, veio castigo. Se diz, incerto, que o Major terminou envelhecendo sem si mesmo, pobre pedinte...
— “Não era, Surupita? Era ou não era?...” Mas — quando o Dalberto gravava assim, forte de si, encalorando, o que minava na gente era o cismo, de supetão, de ser, vindo no real, tudo por contrário. De simples, todo o mundo farto sabia o que tinha também de nojento naquelas casas de bordel: brigas, corrumaça de doenças, ladroagem, falta de caráter. Alguém queria saber de sua mãe ali, sua filha, suas irmãs? Muitas mulheres falsas, mentirosas, em fome por dinheiro, ah vá. Aquelas, perdido seu respeito de nome e brio, de alforria, de pessôa: que nem se quisessem elas mesmas por si virar bichos, que qualquer um usava e enxotava — cadelas, vacas, eguada no calor... Mas, depois, afastado de lá, no claro do chamado do corpo, no quente-quente, por que é que a gente, daquilo tudo, só levantava na lembrança o que rebrilha de engraçado e fino bom, as migalhas que iam crescendo, crescendo, e tomavam conta? E ainda mais forte sutil do que o pedido do corpo, era aquela saudade sem peso, precisão de achar o poder de um direito bonito no avesso das coisas mais feias.
— “Não é não, Surupita?” Ah, não era o bom da vida? Aquela mulher, todos a tratavam de “Lila Ceroula-de-Homem”, “A Mais-de-Todas”... — era como ela queria. Lila — o que dizia que se chamava. Mas a ele, Dalberto, ela contava, segredim de segredo, que o seu nome verdadeiro, com que tinha sido batizada, era o de Analma. De instruída, deixava-o até com vergonha — ser um pobre boiadeiro, dúvido de tão ignorante. Lia em livros. Sabia versos. Enquanto ele descansava, ela declarava um arreviro de coisas: — “Vem, Bem, deixa tua boca aqui no travesseiro... Me nana, me nina, me esconde, me cria... De homem e dôce bem- -feito, o quieto é que eu mais aproveito... Comigo é: pão-pão, beijo-beijo!...” Desenlouquecia.
Do relongo de reouvir e repensar, Soropita extravagava. Sim escorregava, somenos em si — voltava ao quarto com a rapariga inventada: as sobras de um sonho. Mais falavam em Doralda, se festejavam. A rapariguinha estava ali, em ponta de rua, felizinha de presa, queria mesmo ser quenga, andorinha revoando dentro de casa, tinha de receber todos os homens, ao que vinha, obrigada a frete, podia rejeitar nenhum... — “Até estou cansadinha, Bem...” E se despendurava de abraço, flauteira, rebeijando. Rapariga pertencida de todos... Ao ver, àquele negro Iládio, goruguto, medonho... Até o almíscar, ardido, desse, devia de estar revertendo por ali, não sendo o que aquela menina gastava em si um rio lindo de bom perfume... Ela tãozinha de bonita, simples delicada, branquinha uma princesa — e aceitando o preto Iládio, membrudo, franchão, possanço... Ah, esse cautério! — Soropita se confrangia.
— “Sabe, Surupita, eu tenho estima a ela. Não é que esteja caído de perdido...” Dalberto não gostava de paixa. Se divertia da silva, bandoleiro com muitas, comboiava aquele mulherío quase todo. Conhecia de sim a Liolina, a Mélia Cachucha, a Nhiinha, Maria-Mãe, a Estela, Dona Doní, a Prenda... A Analma mesma mandava ele saber as outras, poder ter vivido e comparar de todas ela era, mim assim, a mais, mulher do mundo...
...Soropita roubava a rapariguinha levantada da deslei daqueles homens — todos, lé e cré, que tinham vindo para gozar, fossar, babujar. Ela, morninha, o beijava na boca. Tinha de ter um nome: Izilda... — Izilda. Chamava-a, ela atendia. Mas era o ferroo de um pensamento, que gelava, que queimava, garroso como um carrapicho: o preto... Izilda entregue à natureza bronca desse negro! O negro não estava falando como gente, roncava e corria de mãos no chão, vindo do meio do mato, esfamiado, sujo de terra e de folhas... Tinha de a ela perguntar. Ela respondia: — “Bem, esse já me dormiu e me acordou... Foi ruim não. Tudo é água bebível...” —; e se ria, goiabadinha, nuela. Soropita a pegava, cheirava-a, fariscava seu pescoço, não queria encontrar morrinha do preto, o preto mutoniado, o tóro. Izilda ria mais, mostrava a ponta da língua, fazia uma caretinha, um quebro. E desaparecia. Aí, estava escuro. Soropita estava lá, involuntário. Assim, à porta de um quarto, cá da banda de fora. As coisas que ele escutava, que, dentro daquele quarto, por dentro trancado, aferrolhado, estavam se passando: chamego, um nhenhém dengoso, risadas; o barulho de dois se deitando, homem puxando a si a mulher, abraçados, o ruge-ruge do colchão de palha... Mas — não era Izilda, quem estava com o preto vespuço, com o Iládio... — a voz era outra: Doralda! Doralda, transtornados os olhos, arrepiada de prazeres... O preto se regalava, no forcejo daquele violo, Doralda mesma queria, até o preto mesmo se cansar, o preto não se cansava, era um bicho peludo, gorjala, do fundo do mato, dos caldeirões do inferno... Soropita atônito, num desacordo de suas almas, desbordado — e o que via: o desar, o esfrego, o fornízio, o gosmoso... Depois, era sempre ainda Doralda, na camisinha de cambraia, tão alva, estendida na cama larga, para se repousar; mas que olhava-o, sorrindo, satisfeita, num derretimento, no quebramento, nas harmonias! O preto, indecente, senhor de tudo, a babar-se fazendo xetas. Mas esse preto Iládio se previa p’ra bom fim um dia, em revólver; corjo de um assim, o sertão deixa muito viver não, o sertão não consente. P’ra não ser soez, ser bruge, não desrespeitar!... E o Dalberto, de contracurso o Dalberto contando, contando... Como se vendo e sabendo o pão do pensamento dele Soropita, como se tudo neste mundo estivesse enraizado reunido, uma escuridão clara, o caber das pessôas.
— Surupita, um não imagina o virgem do reporto das coisas que ela praz em me dizer! Assim por diante: — “Agora, querido, tu precisa de ir embora, me deixa sozinha por duas, três horas — agora vem vir fulano boiadeiro, que paga por sua regalia completa, me desrespeita muito... Tem dó de tua noivinha, que vai passar por coisas tão feias... Você está sofrendo? Quero que um sofrer, que penes... Vai, está na hora do boiadeiro, pra ele tenho de ficar bonita... Depois tu vem; vem? Amoroso, carinhoso, beijar de me consolar...” Dizia aquilo demordida, branca de fôgo, Surupita, me apertava o braço, de doer. Mas, no enquanto, volteava a verdade num brinquedo, homem via que ela se alegrava acinte com o que falava, no fêmeo vivo daquele frenesim... Ressabiava. — “Mas, tem horas, que eu penso que quem-sabe é pelo quindim dessas meias-doidices, mesmo, Surupita, que ela não sai da cabeça minha, que é mais um sabor...”
Soropita perdia a deixa. Só num lance de arroubo, seu pescoço se esquentando, o nhém nos ouvidos: que se um mundo de pássaros cantantes revoassem em cores do buritizal, no verdim da vereda à mão direita, onde arrozava um capim de fim — ... Doralda, pensava nela através do assunto, numa baldança... — à mão esquerda um gravatá de flôr sangrenta, na grande mancha do campo limpo, cheirando a alfazema-brava e cidrilho; e o Dalberto que reperguntava: — “Que é o mel branco, damice de mulher, hem Surupita?...” De novo sonsa e solevada a mansidão das coisas, o farfalhar mudo das borboletas, um vago de perfume que não se acabava, aquela alegria vagarada, sem medo nenhum, ramo seco e flôr ficada, o tremor de um galho que passarinho deixa:
— Mas, Dalberto, por que é que você não se casa?
Simples que foi, numa volta de olhos. Mas Surupita não fazia de dizer por caçoadas; Surupita nunca não brincava. Será que vinha não prestando atenção ao conversado? Ou tinha falado com segundas vistas? O certo que era estúrdio.
— “Eu, casar? Você acha? Fusa e fubã, boi de sutrã... Macaco me ajude!” — o Dalberto gracejou.
O Dalberto olhava. Causa porque olhava. Dentro de si, Soropita vinha-se desdesenrolando, recolhendo, de detrás de môita para atrás de môita, se esfriava. Cacos e coisas que voltam dos ares. O morrão de uma vela se acabando no escuro. Se mordia a língua. Assunto verdadeiro, cada um guarda para si consigo. Cada qual seu rumo. Atravessar aquilo, se embebendo de água sozinha. — “Casamento dá juízo...” — disse isso baixo e mau som. O Dalberto em branco ficava.
Demorou para tornar a falar, em desconversa. Sabia pensar, tomar conta de si. No contempo, sua cabeça mesma o tirava para outro lado, qualquer assunto; gostava de pôr os olhos no verde. E tocava-o, a surdo, uma sombra de desgosto, que nem meio aviso, má coisa por vir, sem dessa poder renovar memória, mas mal desesquecida. Respondia às perguntas de Dalberto:
— O rio? É nove léguas por lá, descambando a Serra. Mas, neste tempo de frio, nunca tem peixe...
Só o esperto de tristonha, sem vão de motivo, de má traça. Não ventava frio, a mor dava um tempo bom, agora perto do sol se pôr. Esquerdeavam. Com pouco iam chegar em casa. Vinham as pessôas para escutar a novela. Se jantava. Aprovava que Dalberto voltasse no tarde da noite. Um amigo nunca estorva, mas a gente estava desacostumado de intímo de hóspedes. Com as horas, se cansava... O que não podia era se lembrar daquele negro. Sabia, se havia: se désse de frente com o preto, e o preto escarrasse de cavalo, que um ódio vinha, enxofre azul — com tal fero, que, para gastar essa raiva, muito precisava. Pensou tão forte, que olhou depois o Dalberto, como se o Dalberto pudesse ter ouvido.
— Ali é tremedal, Surupita?
— Tremedal, a próprio, não. Mas, atolar, atola. Vigia aquela, quase marimbú. Veia de vereda engole...
Se apeava, para ir abrir o pegador — não deixando o Dalberto, que queria se adiantar: dizia que Surupita estava impedido por demais, com as sacolas e outras bagagens, repletas as bolsas da sela. Só entregava a rédea de Caboclim ao Dalberto, que passava, adestreando o cavalo. Encostava o pegador. Podia imaginar o que o Dalberto devia de estar pensando, Dalberto cuspia no copo: — “... Casar com meretriz? É virada! Nem puxado por sete juntas de bois... Sei que uns fazem; pior p’ra o caráter deles...” Reamontava. — “...É baixo. P’ra pandegar, isto! Só p’ra pagode redobrado, aindas que com bolsa aberta e bom coração...” Dalberto assoviava.
— Pois, mesmo ali, onde a estrada torce, já é terras da gente. Regularzinho...
Mas ele mesmo escapulia escote de toda recordação de desagrado. Vida de um é caminhar por fora, beira pasto, só no traço de obrigação. Com menos, se chegava. Doralda já devia de estar atentando nessa demora de hoje. Um cheiro de moitinha de-vez de mata-barata. Ali não dava, mata-barata, só nas campinas altas, nos “alegres”. Ou grão-de-galo; mas não era tempo. Soropita com as costas da mão se asseava o rosto, a cicatriz do queixo o acabrunhava. Volta de viagem, a gente está sempre suoso, desconfortado... Doralda era um consolo. Uma água de serra — que brota, canta e cai partida: bela, bôa e oferecida. A gente podia se chegar ao barranco, encostar a boca no minadouro, no barro peguento, amarelo, que cheira a gosto de moringa nova, aquele borbotão d’água grogolejava fresca, nossa, engolida.
— Não. Bem poucas. Quase não se mata...
Era um rastro de cobra, seu regozinho contornado na poeira, no descer para a grota. Do capim, uma codorniz envoou. O melosal já se bem molhava, de sereno. A mula rata soprou e esperou. Periquitos passavam, das veredas, pretos contra o poente, o dia deles tinha terminado. Os buritizais longe escureciam. O Dalberto havia de estimar Doralda. Quem como era o Dalberto, peito de bom amigo, extenso de correto. Só não ia dar os presentes a Doralda com ele vendo. Não ia dar o sabonete... Dalberto podia ver que ele tinha casado tão bem. Se... Esbarrou.
Só o triz de um relance, se acendeu aquela ideia, de pancada, ele se debateu contra o pensamento, como boi em laço; como boi cai com tontura do cabelouro, porretado atrás do chifre. Senseou oco, o espírito coagulado, nem podia doer de pensar em nada, sabia que tinha o queixo trêmulo, podia ser que ia morrer, cair; não respirava. As pernas queriam retombar de lado, os pés se retinham nos estribos, como num obstáculo. Soropita estava ficando de pedra. Mas seu corpo dava um tremor, que veio até aos olhos. — “Uai, câimbra, Surupita?” — “Mas melhorou...” Era aquela tremura nervosa, boi sonsado pelo calor. Curvo na sela. O coração tão pesado, ele podia encostar a cara na crina do animal. O Dalberto não tinha culpa... Mas, por que tinha vindo, tinha aparecido ali, para o encontrar como amigo, para vir entrar em casa, tomar sombra? E já estavam quase à porta. Fosse o que fosse, nada mais remediava. Mesmo enquanto, não podia se entregar àquele falecimento de ânimo. Mas a ideia o sufocava: quem sabe o Dalberto conhecia Doralda, de Montes Claros, de qualquer tempo, sabia de onde ela tinha vindo, a vida que antes levara?
Quem sabe até já estava informado, tinha ouvido de alguém por ali o nome dela — como a mulher de Soropita — e se lembrara, talvez mesmo por isso agora queria vir, ver com os olhos, reconhecer... E então a maior parte da conversa dele, na estrada, só podia ter sido de propósito, por regalo de malícia, para tomar o ponto a ele Soropita, devia de ter sido uma traição! Talvez, até, os dois já haviam pandegado juntos, um conhecia o outro de bons lazeres... Sendo Sucena, Doralda espalhava fama, mulher muito procurada... O Dalberto, moço femeeiro... Ai, sofrer era isso, pelo mundo pagava! O que adiantava ele ter vindo para ali, quase escondido, fora de rotas, começando nova lei de vida? E a consideração que todos mostravam por ele, aquele regime de paz e sossego de bondade, tão garantido, e agora ia-se embora... O Dalberto, por sério que quisesse ser, mesmo assim falava. Os vaqueiros, o pessoal todo, sabiam logo, caía na boca do povo. Notícia, se a boa corre, a ruim avôa... De hora p’ra outra, estava ele ali entregue aos máscaras, quebrado de seu respeito, lambido dos cachorros, mais baixo do que soleira de espora. Podiam até perder toda cautela com ele, ninguém obedecer mais, ofenderem, insultarem... Então, só sendo homem, cumprindo: mas matava! Rompia tudo, destro e sestro, rebentava!
— É bonito, onde você mora, Surupita. Tanta flôr...
E vinha mesmo uma saudade de parados recantos, sozinho, à sombra de velho engenho, bondosos dias, as águas do bicame rolando no barulho puro delas, um jorro branco... Desespero: se esconder de si só mesmo... Salvo que o Dalberto era amigo, podia respeitar o passado de outro amigo. Podia conservar dever de segredo. Mas não era merecido, não era possível! Se, no avistar Doralda, o Dalberto e ela exclamassem saudação de surpresa, se dessem qualquerzinho sinal de já serem conhecidos, de Montes Claros, da casa da Clema?... Lacráu que pica; era uma ferida. O Dalberto — quem o conhecia melhor, seu amigo mais amigo, que sabia tudo dele, acompanhara as grandes passagens de sua vida, respeitava seu preceito... Não podia! O pior, que não podia — era que o Dalberto soubesse. Por ele mesmo, Dalberto, por causa mesmo dele. Não podia, assim num momento, desvirar tudo, desmanchar aquela admiração de estima do Dalberto — então tudo o que ele Soropita tinha feito e tinha sido não representava coisa nenhuma de nada, não tinha firmeza, de repente um podia perder o figurado de si, com o mesmo ligeiro com que se desencoura uma vaca morta no chão de um pasto... Mas, então... Então matava. Tinha de matar o Dalberto. Matava, pois matava. Soropita bebeu um gole de tranquilidade.
Como se entrasse num mato de mata-virgem. O cheiro preto. A mata-virgem era uma noite, seu fresco. Cheiro verde e farfalhal, com cricrilos. Cheiro largo, gomoso, mole — liso, de jaboticaba molhada — ou de começo de espirro, vapor macio, fim de chuva, como o ralo desmaiado melodor de tachas, de longe, no frio da moagem, de por maio, por junho... Se via saindo daquela suspensão. Era um alívio estalado. Aceitava e estava tranquilo, que nem se tivesse, de saída para uma viagem, apalpado a algibeira e sentido o volume fiel do dinheiro, bastante para qualquer despesa. Como se põe um chinelo de borco, para um cão esbarrar de uivar. E nem precisava de pensar naquilo com fel frio. Guardava. Guardava como um gatilho armado, mola de cobra, tenção já vestida. O mundo reentrava em suas formas. Respirou bem. Se concertou na sela, pegou pouso. De aprumo. Caboclim soube de novo de sua mão a fora — beijou o freio e se embalançou mais, cavalo de rico dono. — E Soropita pigarreava e com entono prorrompia:
— Isto aqui, me atendem: sabem o certo! Todos me respeitam, fiando o fino, já aprenderam que eu não sou brinquedo. Sem-vergonhice, não tolero; não admito falatório — não estou para pândegas! Respeito honesto, comigo, minha casa, minhas coisas, tudo no direito...
— “Sabe, Surupita, você está me lembrando Seo Sulino Sidivó, no determinar o rejume da fazenda dele... Mas é o seguro!” — gracejava o Dalberto, não acostumado a ouvir assim o amigo enfunado em suas honras e autoridade.
Soropita não queria olhar para o Dalberto, imaginar seus olhos viventes, ver, num enquadrado, a arcadura larga de suas costas, confiadamente expostas sob o pando da camisa cáqui, que a brisa movia num agito como sacolêjo d’água, ondeada estremecendo.
Variavam pela mão esquerda, atalhando para não precisar de atravessar o arruado do Ão. O Dalberto não devia ter vindo. A vida era um cansaço. Mas já chegavam. Corriam os cachorros, se entremeando latindo. A casa, com as janelas abertas. A paineira era uma rosa enorme. O menino campeiro, que terminava de prender os bezerros, dizia de lá um louvo a Jesus Cristo. Soropita abria a cancela, esperou, retendo-a. Por um bento momento, se o Dalberto agora carecesse de ir embora, agorinha, sem delonga nenhuma, grande perdão, grande motivo, virava de rédea, na mula rata se ia indo, a toda lonjura... Tudo ficava um desate de sonho ruim, se desfumaçando. Ah, não. Junto de casa é que se via que era bem de tardinha, o fecho do dia. Uma certa claridade ainda repassava o ar, mas pouco e pouco fugindo, retirada, quase estremecente. As rolinhas ainda arrulhavam? Uma vaca, estrafinada, berrava, de algum ponto. Os animais pisavam um fofêjo de bagaço de cana e palha de milho. O Erém, o Zuz, o Moura, Pedro Paulo, estavam lá, no baixo da entrada. Vinham para ouvir a novela.
— Vamos desapear...
Mas a casa, mesma, até parecia vazia. O rapazinho campeiro tomava conta da besta e do cavalo. E o Dalberto nem tinha perguntado nada; e ele Soropita, no caminho, nem disse que estava casado, não pronunciara... O cheiro bom de casa, um remanso retardado. Como as pessôas vivas de conhecidas — Zuz, o Moura, Pedro Paulo, o Erém — no momento dum rodar mais forte da vida da gente perdiam de repente quase toda importância, estavam ali como se fossem umas crianças pequenas; para que serviam? Soropita se sentia bambo até das pernas, vinha a passos contados. O rapazinho, era para levar as coisas para dentro — entregar tudo direto a Dona Doralda... Descalçavam as esporas. O Dalberto fazia perguntas, sobre o gado, as terras. A essas horas de passar, correr o tempo, depressa, de um ou outro jeito estar tudo acabado. Entravam. E Doralda, fora do comum, não aparecia. Ele devia ir ao encontro dela, falarem. Não conseguia. Um pejo, um moroso de deixar tudo por si ser. O Dalberto aceitava de se sentar na rede; para ele, tudo normava, se via que estava em paredes amigas.
Ali, pela porta do corredor, Doralda vinha, não vinha. Ele não queria que ela o notasse inquieto; não perguntasse. E ele tinha também de se sentar: ficando em pé, sentia o sem-jeito de não ir logo lá dentro, no natural que seria — já que não estando cansado, e assim tão de-casa nos modos... Sentava-se, mesmo antes d’o Moura e do Zuz tomarem lugar. Aqueles do Ão, sempre moles, todos num desvalor de si, de suas presenças. Gente sem esforço de tempo, nem de ambição forte nenhuma, gente como sem sangue, sem sustância. Tudo que acontecesse ou não acontecesse em roda, esses boiavam a fora uma distancinha e voltavam para se recolar, que nem ruma de cisco em cima d’água. E parecia que, se eles não fossem assim, como que chamando que tudo de ruim pudesse vir e pousar, se eles não espalhassem no ar aquela resignação de aceitar tudo, aquela moleza sem nervo — que, então, no meio de pessôas duras e animosas, tudo andaria de outro modo, os possíveis corriam para entrar num molde limpo de vida certa!
E chegava também o Jõe Aguial, seu vezo de coçar a cabeça, ficava um tempo olhando a gente, olhando cada um de sua vez, e piscando, sem começar a falar. Tinha trazido a mulher, dizia, mas a mulher beirara por fora a casa, entrava pelos fundos. — “A Tiantônia veio ajudar...” Sabia que tinham hóspede. Como sabia? Teria visto o Dalberto chegando com ele — mas não podia ser companhia de estrada, só um passante? O Erém conversava de lado, com Pedro Paulo. E como se tivessem informação da comitiva do Dalberto, arranchados no Azêdo. De tudo aquela gente pegava notícia. E agora queriam ouvir a novela? — “Você é quem está dizendo, Surupita...” “— Ah, seo Surupita, não imagina...” Ouvir, já tinham ouvido — tudo, de uma vez, fugia da regra: falhara ali no Ão, na véspera, o caminhão de um comprador de galinhas e ovos, seo Abrãozinho Buristém, que carregava um rádio pequeno, de pilhas, armara um fio no arame da cerca... Mas queriam escutar outra vez, por confirmação. — “A estória é estável de boa, mal que acompridada: taca e não rende...” — explicava o Zuz ao Dalberto, com um sorriso, encaminhando conhecimento. Dalberto concordava, mesmo sem saber o assunto. Bom que, assim noitinha, não era preciso ir mostrar a ele um giro da fazenda, descarecia. Como se ocupar cabeça, duma vez, com tantas diversidades?
Soropita começou a recontar o capítulo da novela. Sem trabalho, se recordava das palavras, até com clareza — disso se admirava. Contava com prazer de demorar, encher a sala com o poder de outros altos personagens. Tomar a atenção de todos, pudesse contar aquilo noite adiante, sem Doralda nunca se mover de lá de dentro, onde estava protegida. Sua voz tremia um tanto. A novela: ...o pai não consentia no casamento, a moça e o moço padeciam... Todos os do Ão desaprovavam. O Erém tinha lágrimas nos olhos. E chegavam Pedro Caramujo e o Wilson, o que ajudava a tomar conta da vendinha. Rangia a rede, o Dalberto se balançava, devagar, mas fazia crer que estivesse acompanhando também a estória do rádio. A empregadinha vinha trazendo o café. — “Onde está Dona Doralda?” — o nome dela era mesmo para se dizer com força de direito, de orgulho. Seo Surupita, Dona Adoralda já vinha... Era preciso trazer luz, nem uns enxergavam mais os outros; quando alguém ria, ria de muito longe. O capítulo da novela estava terminado.
Soropita tomava seu café. Jõe Aguial cochichou: queria se apartar com ele — tinha um assunto. Mas Jõe Aguial podia esperar. Soropita estava temendo toda notícia, toda conversa. Trazia à memória a passagem — fazia tantos anos — na saída de Salinas, quando ele estava em beira de estrada, em cima de seu cavalo, e a boiada avançando, e da banda de lá chegava correndo de galope um vaqueiro, gritava uma coisa, que não se ouvia, mas devia de ser muito importante e urgente, e levantava a mão, mostrando um papel — podia ser telegrama ou carta — e a boiada cortando o caminho entre eles dois, no rodo da poeira, uma vertigem de boiada enorme, que escorrendo, os bois se estrepolindo, uns se encavalando nos outros, no sobrosso daquela aflição... O Dalberto agora respondia a perguntas do Moura, dava divulga do gado que iam tocar para seo Remígio Bianôr, declinava seus companheiros vaqueiros. Soropita precisava, de repente, de perguntar: — “E esse preto Iládio, muito vale?” “— Ah, esse é pai-d’égua, homem dobrudo, de qualquer lado ele remete...” Soropita dava para sua tristeza; mordeu um tijôlo. O lampeão belga clareava bem a sala. Mas que não deviam entrar em tanto maior conhecimento com o Dalberto, como se Dalberto fosse velho no Ão, morador do lugar. Aqueles todos vizinhos, era uma dificuldade maior que estivessem agora ali. Como se, sozinho com Doralda e Dalberto, tudo por si se resolvesse; quem sabe nada não havia? De certo, nada, com a ajuda de Deus. O Dalberto estava recostado na rede, rodeado, prazido. Do que, um tempo antes, tinha pensado decisão, Soropita destorcia ideia de reafirmar ou renegar, essas coisas se governam. A janta demorava. Doralda não aparecia. O Erém perguntou quem ia amanhã ao Andrequicé, ouvir o rádio — disse que Fraquilim Meimeio andava visitando alguém, no Espírito-Santo. O Zuz se chegou ao escuro da janela. Disse: — “Tem muitas estrelas...” O Dalberto se levantou. Espichou umas passadas, indo e voltando. O Moura gabou a qualidade daquelas botas, de novo uso. Os grilos deram um crescido em seu frenesi. Soropita também se levantava.
Doralda apareceu.
Doralda em chegar — dava boa-noite: as palavras claras, o que ela falava, e seu movimento — o rodavôo quieto de uma grande borboleta, o vestido verde desbotado, fino, quase sem cor — passando, e tudo acontecendo diferentemente, sem choque, sem alvoroço, Doralda mesma seduzia que espalhava uma aragem de paz educada e prazer resoluto — homem inteirava a certeza de que ela vinha com um sério de alegria que era sua, dela só, que se demonstrava assim não era de coisa nenhuma por suceder nem já sucedida, nem por causa das pessôas que ali estavam — e um bem-estar que se sobejava para todos; Soropita, no momento, nem sabia por que, perdeu o tento de vigiar como eles dois se saudavam, se o Dalberto e ela trocavam com o olhar algum aceno ou acerto de se reconhecerem — conforme ele estava espreitando por reparar, e, agora, no átimo, como que se envergonhava altanto daquela má tenção, mais sentia era um certo orgulho de vaidade: aquilo nem parecia que se estava nos Gerais — Doralda vestida feito uma senhora de cidades, sem luxo mas com um gosto de simples, que mais agradava: aqueles do Ão a admiravam constantes — parecia que depois de olharem para Doralda logo olhavam para ele, Soropita, com um renovamento de respeito — homem que tinha tido sorte de tenência e capacidade para que Doralda gostasse dele e dele fosse, para sempre ficasse sendo, — e não tiravam os olhos dela: o jeito como andava, como se impossível e depressa tomasse conta de tudo, ligeiro e durável tudo nela, e um cheiro bom que não se sentia no olfato, mas no mexido mudo, de água, falsa arisca nos passos, seu andar um ousio de seguidos botes mesmo num só, fácil fresca corrente como um riacho, mas tão firmada, tão pessôa — e um sobressalto de tudo agradável, bom esperto e sem barulho — e falava com um e com outro, o riso meio rouco, meio debruçada, ia e vinha sem aluir o ar — dama da sala ... Mas — não semelhava uma mulher séria, honesta, tendo sido sempre honesta, pois, não achavam, todos? Não achavam?!
Como veio para ele, lhe pôs a mão no ombro, ele a meio a abraçou, com um sisudo carinho estabanado e não bem medido, ela sempre sorridente, nem de palavras: Soropita adivinhou no relumêio de seus olhos que ela já tinha desembrulhado os presentes, que assim agradecia. E toda nada disse — parecia um vexame, sem ser. Nem conversou com o Dalberto. Soropita só tinha definido: — “Este, aqui, é o Dalberto...” Não carecia de recomendar que era um amigo, um amigo velho, ali não se usava declarar essas condições; e o sorriso de Dalberto era um como se pudesse gabar: — “Tudo está bem em ordem, estimo tudo o que ao meu amigo Surupita pertencer...” O Dalberto também era um sujeito que sabia cumprimentar as senhoras. E Doralda antes disse uma brincadeira ao Erém e ao Zuz, por tolice desses, que ainda honrados se praziam, e riam; ria, ela, a risada lembrável e de arrojo, Doralda nunca tinha acanhamentos. E mandava que eles entrassem, assim ela se escapou pelo corredor, como se tivesse vindo só para um esvoaçar por entre os homens, e logo desaparecer, tirando-os, chamando-os, para o interior da casa, para a sala de jantar.
Daí, enquanto jantavam — jantar havia parar os que quisessem, mas todos cumpriram determino de respeito de ir s’embora, mesmo que aquela noite mostrassem um incerto de demorar poucado mais; e só permaneceu Jõe Aguial, por espera de outro café e depois levar Tiantônia, que não queria aparecer, teimava de ajuda na cozinha, — enquanto principiavam a jantar, tudo podia ser pelo melhor, Soropita tinha sede e tinha fome, também não via tanto para um se preocupar, o que viera vindo era numa agitação, só espécie de exagero, o Dalberto não apunha malícia vista nenhuma, nem manejo de fingimento, nem desjeito, e Doralda regrava a mêsa, com um préstimo muito próprio, seguro. Valia ver como ela era, como cuidava. Tinha uns brincos muito grandes nas orêlhas, as orêlhas descobertas, o cabelo preto e liso passando alto, por cima delas, prazer como eram rosadas. Pousava, no se sentar, a fofo, sem esparrame, e quando levantava, ia à cozinha, aquele requebro de quadril hoje parecia mais avivado, feito de propósito. O Dalberto a admirava. Agora, o Dalberto entendia por que ele, Soropita, tinha escolhido de se casar. Doralda sacudia a cabeça fingindo uma dúvida ou um sestro — tudo dava a entender, a gente via que ali havia mulher — parecia que estava fazendo cócegas no rosto da gente, com seu narizinho, mesmo seu rosto. O que ela falava:
— Pensei que tu hoje tinha me escopado, Bem: que nem vinha mais, tivesse fugido com alguma mocinha do Andrequicé...
E punha a cabeça meio para trás, os olhos quase fechados, um sorriso sem se abrir. O Dalberto, como se mandado por ela, olhava também para Soropita. Só o Jõe Aguial contestou:
— Não é capaz! Juro na vez dele... Eu pago pelo compadre...
— “Tivesse me achando velha...” — desafiava; quando sorria mais, mostrava só a fila dos dentes de cima, todos brancos que brilhavam.
— Eh, quem tem ouro não campêia tesouro... E comadre Adoralda nem daqui a vinte anos que nunca fica velha! Pode amadurecer um tanto, mas o que sempre se açucára...
Ela punha as mãos no peito, como se guardasse os seios do olhar de alguém, e sacudia a cabeça que não, se abalavam os brincos, o cabelo se despenteava um pouquinho, ela o ajeitava só com um outro jogar a cabeça, e tinha um modo de a toda hora acertar com a mão o vestido, no ombro — a aliança era a joia mais preciosa, entre aqueles anéis todos. De rir:
— Homem é bicho comilão...
O Dalberto nem podia gracejar com os demais, estava com a boca cheia de quiabo com galinha, só arremedou gesto. — “Oi, que levou pimenta!...” — foi o que depois aguentou dizer, com lágrimas em muitos olhos. Soropita olhou-o, fraternal, serviu-lhe o copo d’água.
— “Você falha aqui hoje, volta amanhã cedinho...” — disse-lhe, como ordem de amigo hospedador.
— “A cama e o quarto já estão até aprontados...” — Doralda confirmava, cortando sua carne de porco com faca e garfo, num procedimento de gentileza, como devia de ser.
E Soropita se levantava para buscar cerveja, Jõe Aguial abria as garrafas; o Dalberto não rejeitava de ficar. — “Já mandei p’ra o pasto a mula rata... Como é o nome que ela atende?” — acrescentava Soropita — em sua súbita felicidade, fora de hábito enchia para si o copo, fazia questão de beber.
— Nome dela é Moça-Branca...
— “Descaro!” — Soropita ralhava, sem saber pegar bem o tom de gracejo. E o Dalberto batia com o queixo, confirmando, e se servia ele mesmo de angú, chegando o assento mais para perto da mêsa e afastando mais à vontade os braços, de si contente com o dito de revelação. Doralda virava o rosto, para rir, quem sabe se mesmo envergonhada.
O quanto via no Dalberto, Soropita certo se confirmava de que fosse um simples sossego sem ofensa, como melhor não podia ser. E se voltava para Doralda, crente de que só porque ela estava ali era que tudo tomava rumo acomodado e bom, tanta paz. Jõe Aguial começou a contar a história do noivado desmanchado e tornado a combinar, da filha dum sitiante do Os-Verdes; e conversa se teve que vem e vai, conversinha, falavam disto e daquilo, coisas de gente dali do Ão. O Dalberto ficava um tanto fora dela, mas de bom garfo se ajudava, e bom riso, não se dando de posto adeparte. Já ao fim, depois do dôce, Soropita se adiantou a levantar — precisava de prestar as palavras amáveis à Tiantônia, na cozinha; e daí Jõe Aguial queria lhe dizer o recado importante: saíram os dois para o quintal.
Festavam forte seu cicil os grilos do frio, e como a noite se alteava bonita, em grandes estrelas, a gente podia ceder atenção de simpatia até ao cantiquinho deles. O céu mesmo se mexia, o ar era bom de se respirar. O jasmim-verde e o jasmim-azul obrigavam tudo com seu perfume — que dava para adoçar uma xícara de café. Aquele cheiro de jasmins, que esvoaça de nuvem solta, só perto do rosto, do nariz da gente, engrossando nata, e que não vai encostado até à fonte de donde brotou, como os outros cheiros fazem, mais parece degolado da flôr.
Mas Jõe Aguial passava era um recado, do senhor Zosímo, trazido por seo Abrãozinho Buristém: se ele Soropita já tinha resolvido o negócio, senhor Zosímo tocava ali de volta para Goiás já no sábado, gostava de poder ir ao menos com um apalavro qualquer... O Jõe não tinha querido dizer nada perto de Doralda, o assunto estava ainda um tanto guardado, não sabia como ela tomasse...
— “Me demoro, compadre Jõe. A bem, pra pensar, mas me demoro... Vamos voltar p’ra dentro, compadre Jõe... — puxava-o Soropita, afadigado subitamente, se tolhendo com um palpite, que era quase um mal-estar. — “Tão vez o Dalberto também careça de vir aqui fora, e esteja com acanho...” — se desculpou.
Tornava a entrar na sala. Em si, num estado de alma-e-corpo como quando o vento revira, Soropita se constou de que alguma coisa estava mudando. De pé — se sentar pertinho de outro homem ela não era capaz de fazer, esse sistema — mas Doralda tinha vindo para mais junto do Dalberto. Uma conversa nova servia aos dois, de repente assim, um trato quase como de parentes, animado e risoso. Doralda apoiada no respaldo de uma cadeira, se debruçando. De costas, nem viu a entrada de Soropita. O que eles estavam se dizendo:
— ... Montes Claros me deve paixão...
— Eu também...
Soropita não olhou ninguém, se sentou: deu, de doer, com o cotovelo na quina da mesa. Do que se desnorteava. Ah, mal saíra por um instante, e a conveniência se atrapalhava, logo que ele não estava ali, de vigia que nem boi-touro querenciado em chão mexido, garantindo, com sua vontade de dono. Sem-juízo de mulher — essas poeirazinhas no ar, ao quando brisbrisa! Doralda... Doralda oferecia mais café; ela não cria neste mundo, nos perigos? — “Arte, que me vou, em meus agoras, compadre, comadre...” — o Jõe Aguial pisando no tempo, s’embora, se despedindo de vez, de chapéu. Hora de outras coisas começarem, nada não se podia impedir. Doralda não tinha culpa...
Doralda tinha aceitado conversa com o Dalberto, a respeito de Montes Claros! Bem que ele Soropita se punia, de antes não ter dado a ela um aviso. Não falar em Montes Claros... Por tudo que fosse, não falar em Montes Claros. Nem Dalberto não carecia de saber donde ela era, não devia de. Mas Doralda discorria tão fiada, tão sem guarda de si:
— Sou de lá não, nasci nas Sete-Serras...
— Pois por esse seu lugar já passei, também.
— “Boiadeiro corre este mundo todo... Não é, Sorô, meu Bem?...” — agora ela falava com ele, sendo usual. Soropita se sentava num fôgo. Pudesse, pegava em Doralda, tirava dali, não acrescentar mais nenhumas palavras. Se o Dalberto estivesse caçando nela um rastro de antiga conhecença? Se aquele modo de estatuto, que ele afetava, não passasse de um próprio fingidiço? — “Bem, tu toma mais uma xicrinha?” Não. A custo, pôde Soropita: — “Falar nisso, Dalberto, na ida por esse gado do Seo Remígio Bianôr...” O gado de seo Remígio Bianôr dependia de diversas mamparreações, que o Dalberto explicava. Doralda ia à cozinha. Mesmo não sendo com desaforo, o Dalberto acompanhava com os olhos grandes os movimentos dela, aquele bonito meneio e tal. Olhara até ao fim, a ser que estava saboreando, sabendo quem ela tinha sido. O Dalberto, a rato, tomando calor, de certo, todo homem em horas fica atrevidado em seu seguro, podia furtar açucaragem. Sabia, por tanto, dúvida não tinha mais, o Dalberto tinha se relembrado: a Dadã, a Sucena, da Rua dos Patos! Pois certo, se lembrava. Tinha estado com ela, se via, pode que muitas vezes, p’ra isso são os amigos! Ele mesmo Soropita, não tinha conhecido primeiro a Doralda não foi assim? Chegou na casa da Clema, outras mulheres chamavam, outras passavam — e gostou dela, gostou só no primeiro ela haver, antes de a olhar. Mas, ainda antes, alguém já a tinha noticiado a ele, um vaqueiro companheiro, mangão, um que antevertera, nem sabia mais que nome aquele tinha: — “Soropita, achei uma mulher que é um durame de delícia. É uma cúia de água limpa...” Não estava nas listas, no destino? Gostara tanto, meu Deus! E então, para mais depressa ele se perder, ela não quis aceitar dinheiro em face, era a primeira vez que acontecia isso sucedido: — “Não me põe paga, de jeito nenhum, Bem. Você me despertou muito. Você é demais.” Saíra desexato dali, nos densos de não pensar noutra coisa. De noite, não teve remédio, voltou, de arrancado. Mas foi o chofre: ela desaparecida, no quarto, ocupada, fechada com outro. As mulheres da Clema exageravam dele. — “Está?” “— Está com o Sabarás...” Sabarás era pessôa de cor, não conhecia, disseram a ele, um boiadeiro negro. Na noite, adiou o de dormir, transpassava tantas ideias, uma noite pode ser mais durada sem espaços que a vida toda de um, diária. Cedo, no seguinte, foi lá. Esperou ela acordar, se levantar. As outras mulheres sorriam muito cientes, ele nem se importava. Ela apareceu, ele disse: — “Você quer vir viver só comigo?...” Doralda, a mulher mais singular. — “Pois quero. Vou demais” — ela respondeu num vivo de pronta, nem sabia se ele era bom ou ruim, remediado ou pobre, nem constava o nome dele. Na mesma da hora, saíu da Clema, embarcou para Corinto, para espera. Tudo muito escondido, não queria que aquele vaqueiro onze-onze desconfiasse. Apelido que esse vaqueiro dava a ela era de a Garanhã — qual que ele dizia — um cão! Demasia deles, soência de homem ignorante, qualquer moça pode passar por um papel desses, a vida sabe sinas. Outra não podia nascer de qualidade melhor, mais distinta e perfeita para se guardar respeito, do que Doralda. “Garanhã” são suas filhas, suas mães! — quem repetisse alguma vez conseguia dar a vida por terminada... Nem coberta de ouro e nas riquezas de todo maior conforto, até à velhice, quem sabe mesmo assim Doralda ainda não estava com prêmio de paga pelos sofrimentos e vergonheiras que tinha tido de passar, lá na Rua dos Patos, concedida ao cio dos sujeitos, até de uns como aquele Sabarás... E agora o Dalberto, refestelado, comido e bebido, e com cama aprontada, e senhor de pensar ofensas, de certo tirando coo de seu prazer maior... Malícias — que a mula dele se chamava Moça-Branca, não tinha o direito! Mau dever de um amigo é o sem pior, terrível como o vazio de uma arma de fôgo... O quê que faltava?! Em tanto, até, imaginasse que ele Soropita não conhecia nada do passado dela, mas que a tinha encontrado sobre honesta em alguma outra parte, e iludido se casara, como quem com cigano negocêia; e que ficava ali, sem ter informação, bobo de amor honroso. E que estava prezando o sobejo de muitos, aquela Doralda madama... Ah, não isso, não podia. Não podiam perder-lhe esse respeito, ele Soropita não reinava de consentido nenhum, não sendo o sr. Quincôrno! Mesmo o senhor Quincôrno: era ou não era — seu no seu? — se sofria ou merecia, ninguém tinha o caso com isso, nem quiçás. Só à bala! Mas, agora, em diante, esse seo Quincôrno ia ter alta proteção, e gatilhos. Pesassem e medissem, e voltassem — vamos embalar, vamos nas públicas: carabinas e cartucheiras! — ele era homem. Homem com mortes afamadas! E tomassem tento, boiada estoura é perto do pouso... A farinha tem seu dia de feijão, fossem vendo!
— Você já estará com sono, Soropita? Como que vinha não passando bem...
Não, enganado não. Nem não queria prosápia, essas delicadezas de amigo, e nem Doralda tinha ordem de querer saber a respeito se ele vinha passando bem ou abalado, nem perguntar... Doralda era dele, porque ele podia e queria, a cães, tinha desejado. Idiota, não. Mas, então, que ficasse sabendo, o Dalberto. Ali, de praça, sabendo e aprendendo que o passado de um ou de uma não indenizava nada, que tudo só está por sempre valendo é no desfecho de um falar e gritar o que quer! Retumbo no resto, e racho o que racho, homem é quem manda! E macho homem é quem está por cima de qualquer vantagem!... Então?! A dado, só mesmo o que concertava tudo bem era uma escolhambação, as esbórnias!
— Doralda, Dalberto: agora estamos sozinhos, minha gente, vamos sem vexames de cerimônia... Hora de se festear! Dalberto, isto aqui, nós três, não tem os sérios e seriedades — hoje se aproveita... Doralda, este Dalberto é companheiro velho amigo, farreador e namorista, de toda a franqueza. Doralda, traz conhaque, aí as portas fecha bem. Não quero acanho. Ah, e junto bebo, vou vivente, dúzia de goles não é que me põe dandando de traspés! Vamos alegrar...
Doralda parecia se prazer, não fazia espantos, toda virada para o raro daquela hora. Aí ela trazia os copos. Soropita suava pelos lados do rosto, deu uns passos apreciáveis no largo da sala, foi espevitar a luz do lampeão. O Dalberto se deparava, basbaque, ao que aquilo estivesse sendo brincadeira de peça; e consumia um bom conhaque, bôa boca. Soropita mandava Doralda levantar a cara, bilando-lhe o dedo no queixo, denotava-a a Dalberto:
— Desde vê, Dal: não ela não é um suficiente de mulher, que bate as vazas? Não semelha a sota mais vistosa?
— Sou corriqueira, Bem... Porque tu gosta de mim, tu demasêia... — ela o moderava.
Que era que Doralda estava crendo? Serena se sentava, aquela era uma inocência. Ou a instante tornada a ser a fogosa biscaia da casa da Clema, pelas dôces desordens. Sorrindo, ali, entre eles dois, sua risada sincera meia rouca, sua carinha bonita de cachorro, ela toda apavã, olhando completo, com olhos novos, o beicinho de baixo demolhado, lambido a pontinha de língua, e depois apertava os olhos, como se fosse por estar batendo um sol. Se sentava elegante, com precisão de atormentar os homens, sabia cruzar as pernas. O vestido era fino, era fofamente, a mão de um podia se escorregar por debaixo dele, num tacto que nunca se contentava.
— Os preços, dou é os preços, minha filha... Em o negócio melhor que eu já fiz! Repara, Dalberto. Esta, quem vê, já sabe o que mulher vale. Ao pois? Ah, fuma, fuma um pouco, minha nega, que é do encanto de se admirar...
O Dalberto estendia o maço de cigarro, oferecido; mas Soropita se atravessava:
— Você mesmo acende, para ela, Dalberto, pode acender...
— Será que ele sabe?... — Doralda brejeirava, e fazia com a cabeça que sim, divertida, como certa de que estavam brincando era de Soropita e ela botarem envergonhado o Dalberto, meninão às tontas.
O Dalberto se apurando em acender o cigarro, sem admiração, antes no vexame de quem pensasse que aquela era uma moda de cortesia de pessôas de sociedade, que ele não sabia e tinha estado em pique de desmerecer. Doralda recebia o cigarro acêso e punha-o, mesmo natural, pitava uma tragada. Olhava para Soropita, seu soslaio era dengoso. Nunca tirava os olhos de Soropita. Sorvia outro conhaque. O Dalberto em desaso, pensativo. Soropita por sua vez bebia um gole, e se entortava para trás, quase com uma risada. O que ele estava gostando de ver: como os outros não tinham coragem, para insensatez dividida.
Doralda encarava sem vergonha nenhuma o Dalberto, como era possível o Dalberto persistir embobado em si, assim? Ou só se pensava que ele Soropita estava envidando de falso? O modo de Doralda fumar era com sainete, ela se mostrava possível, como definia, como sorria. Mas que ela estava obedecendo a um antes-de-prazer forte, que se engrossava no ar, que trazia as pessôas mais para próximo uma das outras. Seguia os olhos de Dalberto e Soropita, sempre.
De repente, se levantou. Saíu para buscar alguma coisa. Soropita também se levantou, precisava dos movimentos, foi pegar um copo d’água. Abriu a janela, mal espiou as estrelas. Não queria olhar para Dalberto. Aí, enxotava umas terríveis fantasias sofridas em seu pensamento: o Dalberto era valente rapaz, corajoso, um gavião preso, sem licença de voo — servido em regalias de tudo — pitar, comer e beber, e ter a mulher mais gostosa em seus braços, a que ele escolhesse, em sua ancha rede; mas, depois, quando se conseguia gordo e satisfeito, enfeitado de si, contando prosa com muita tracotância, a gente pegava o porrête mais grosso, a gente... Mas Soropita repelia os fins. Assaz estava meditando fácil, muito em luz, não podia nunca executar isso com o Dalberto, nem tinha os motivos da razão, estimava a muita amizade de um amigo amistoso. Nem ia provar mais gota do conhaque. Tomou outro gole d’água. O Dalberto fumava, calado, desenxabido. Soropita tornou a se sentar. Os dois quase não achavam palavra. Demoraram. Nem sabiam o que esperassem.
— Você gosta mais de mim assim, Bem?
Era Doralda voltando. Estava com outro vestido, chique, que era de cassa leve, e tinha passado pó-de-arroz, pintado festivo o rosto, a boca, de carmins. No pescoço, um colar de gargantilha; e um cinto preto, repartindo o vestido. E tinha calçado sapatos de salto alto — aqueles que ela só era quem usava, ali no Ão, no quarto, para ele venerar, quando ele queria e tinha precisão d’ela assim. Remexida de linda, representava mesmo uma rapariga, uma murixaba carecida de caçar homens, mais forte, muito, que os homens. O xixilo. Seu rosto estava sempre se surgindo do simples, seu descaro enérgico, uma movência, que arrepiava. A sus, ela toda durinha, em rijas pétalas, para depois se abrandar.
Soropita, podia se penetrar de ânsias, só de a olhar. Sobre de pé, no meio da sala, era uma visão: Doralda vestida de vermelho, em cima das Sete Serras, recoberta de muitas joias, que retiniam, muitas pérolas, ouro, copo na mão, copo de vinhos e ela como se esmiasse e latisse, anéis de ouro naquelas especiosas mãos, por tantos sugiladas tanto, Doralda vinha montada numa mula vermelha, se sentar nua na beira das águas da Lagoa da Laóla, ela estava bêbada; e em volta aqueles sujeitos valentões, todos mortos, ele Soropita aqueles corpos não queria ver...
— Gosto. Por demais.
Sério, nunca tivesse sido dum riso, como ele pegava-a pela cintura, puxou-a, ela era dele. — “Faz assim não, Bem... Eu não posso...” — assanho que ela bichanou em seu ouvido, colada. Daí, também sem se rir, se voltava para o Dalberto: — “Eu é que sou a moça branca dele...” Soropita em soberbas se alegrando: de ver a que ponto Doralda queria que o Dalberto notasse o quanto ela dele e ele dela se gostavam. E que no olhar do Dalberto luzia uma admiração, a meio inveja. E de repente tudo corria o perigo forte de se desandar e misturar, feito num prestígio, não havia mais discórdia de ninguém, só o especial numa coisa nunca vista, a relha do arado saindo do rego, os bois brancos soltos na roça branca, no caso de um mingau latejante o mundo parava. E estavam eles três, ali vestidos, corretos, na sala, o lampeão trabalhando sua luz quente, eles três calados, espaço de um momento, eram como não eram, só o ar de cada um, e os olhos, os olhos como grandes pingos de chorume amarelo sobrenadando, sobressaindo, trementes como uma geleia, que espelhava a vinda da muda fala de fundas abelheiras de mil abelhinhas e milhões, lavourando, seus zunidos se respondendo, à beira de escuros poços, com reflexos de flores vermelhas se remexendo no sensivo de morna espuma gomosa de mel e sal, percorrida por frios peixes cegos, dôidos.
— Me deixa ir coar mais café, Bem...
Doralda saíu. Ela estava desinquieta? E nisso o Dalberto restava macambúzio tristonho. Soropita não entendia de si nem de ninguém, como o coração dele batia.
— Surupita, o que você falou... Hã, você acha que eu acertava em me casar com a Analma, o que você pensou, no caminho, que me disse?...
Dando o Dalberto como uma espécie de suspiro, e aquilo falado. Quando que quando, a mão de Soropita apalpara a coronha. O Dalberto nem notou. Ele tinha expressado sincero de si, de coração, e ansioso, feito se a resposta de Soropita virasse a derradeira decisão contra ou em seu favor. O Dalberto não tinha querido debicar. Se ele manifestava assim, tudo o que Soropita vinha pensando estava errado, tudo falso, chegavam os anjos com suas varinhas de ouro, o Dalberto dava até pena, em sua falta de malícias, sua inocência, suas qualidades para ser um bom amigo que nunca duvida, que nunca pensa que um amigo está procedendo mal. Tornas que tomavam conta de Soropita, que até sentiu uma ideiazinha repentina de zombice — pelo apaixono, que um não esperava: pois o Dalberto mesmo não via que aquela Analma tinha sido casada com um doutor, e fugida de sua casa confortável, por projeto de ser mulher-da-comédia, inclinação de ser pública em zonas, gozante, a Mais-de-Todas, e logo uma criatura levada como aquela, e agora ia, por amor a ele Dalberto, pobre rapaz, boiadeiro de profissão, ela ia querer se amigar, largar a vida vivida que lhe prazia? Era mas era muita criancice!
— Mas ela já não é casada, Dalberto? — Soropita se refez de responder.
O arrôxo do olhar de Dalberto falava de uma saudade vencendo sem medida. Disse:
— Bom, casar, mesmo, não refiro... Ao que podia: vir comigo, a gente morar juntos...
Aí riu e cantarolou, sendo que sendo o bom Dalberto satisfeito de sempre:
“Em três tábuas eu não piso, 
cadas três mais arriscada: 
burro troncho, boi caolho, 
amor com mulher casada...” 
— ...Mas, casada ela não é, Surupita. Divertiu do marido, faz tempo. Oé, ele até se mudou p’ra o Paraná, já deve de ter outra... Ah, Surupita, de confessar eu não purgo soberbas nem vexames: eu gosto dela, entendidamente. Azo que estou certo, coração me conta, que ela também em um amor gosta de mim... Você pontuando não acha, pelo dito que eu disse, pelo que já te contei? Olha, Surupita, ela até já fez menção de querer me emprestar dinheiro, se eu carecesse; por me ajudar. Diz que nem não concilia de gastar meia metade do dinheiro tanto que ganha... Deus me livrando disso, que eu preferia as mortes, a aceitar os usosfrutos dumas vergonhas... Mesmo fula fiquei, intimei que, por amor à mãe, desfizesse de vir me repetir aquilo... Mas eu gosto, Surupita. Ao que não posso viver sem ela — com outra não tolero casar! Tem muitas moças-famílias que me querem, até eu digo — ave! — e uma, bem bonitinha, na minha terra, se sabe que fez promessa a santo, p’ra me casar em vão. Sem-graças. Mas, Surupita, amor é coragens. E amor é sede depois de se ter bem bebido...
Soropita se sortia de um bom calor repentino no corpo, a animação, um espertamento de querer, seus olhos procuravam Doralda. Ao aprazível, subia como fôgo solto. Devagar dizendo: — “De certo que pode, Dalberto. O rio é rio na cabeceira... Você não é filho de duas madrastas!...”
Doralda voltava, com o café. “Se ninguém tinha fome de comer?” — “Está na hora é de cada um da gente ir se deitar, minha filha...” “— Você então acha, Surupita? Pois eu já escrevi ontem umas palavras a ela, mandei carta...” Doralda ouviu ou não ouviu, não entrava na conversa. Tornava a sair, dizia ir ver se tudo estava em ordem no quarto-da-sala, para o Dalberto. E como devia de ser aquela Analma, tão formosa como os anjos no Céu, a lembrança dela guardando a mente do Dalberto pelo meio de suas boiadas, por longe, estrada dos Gerais? Como um Aderbal, no Gamelado, que era homem duro e ferrabrás, casado com uma mocinha bonita, dessas moreninhas-claras lisinhas, — esse reunia amigos para bebedeira, e depois, por farrío agradável, autorizava a mulher a se dar p’ra os amigos dele, um dia até o pai dela teve oitiva disso, e veio expresso, repreendeu o Aderbal, que aguentou calado, porque o sogro era homem rico, com moral na política. — “Você acha que ela recebe? Botei no envelope p’ra a casa da Quelema...” Ao enquanto o Dalberto dizia aquilo, lá na Rua dos Patos em Montes Claros, o que podia estar fazendo a Analma, com que homens —; nisso o Dalberto não pensava, não via; se visse, na ideia, havia de estar padecendo. Como se, agora por agora, Doralda não vinha, ele Soropita ia ver, ela estava no quarto do Dalberto, na cama, já toda sem roupa, estava de todo o ponto esperando, mengável, mas ao ver Soropita muito se espantava: “Aí eu pensei que era p’ra eu ficar, Bem... À vez tu não queria, p’ra obsequiar teu amigo? A pois, não era?...” —; e Soropita carregava-a até nos braços, para seu quarto, cruzavam no corredor com o Dalberto, que espantado, que não entendia; e as roupas, perfumosas — o vestido, o corpinho, a saia branca, as meias, as calcinhas com rendas, os sapatos dela — tinham ficado no quarto do Dalberto, e ele Soropita não alcançava coragem de ir, de voltar lá, para tudo buscar... — “A possível d’ela aceitar o que eu escrevi, Surupita, já tenho meu pouso já resolvido: que vou tomar conta de uma fazenda de seo Remígio Bianôr, nas voltas do Abaeté, lá ninguém não conhece a gente, lá juntos vida nova a gente concerta...” Soropita, senhoreante, chamava Doralda. Sem retardos ela vinha, suave airosa sobre singela, tinha estado arrumando lampeão no quarto do Dalberto. Soropita promovia que ela saudasse o amigo logo de bôa-noite, e que pudesse esperar por ele Soropita no quarto deles, de casados, que ele não dilatava. Aí Doralda cumpria o realce normal, nos prazêres de agradar a ele, se despedia... O que era o que não era? Ao então, um touro que está separando uma vaca no calor — simples se só desconfia de outro touro perto, parte de lá, urra, avançando para matar, com um fúria definitiva do demônio... A próprio, competia? Tanto que o meu, o teu. Um cavalo bom eu empresto, mesmo de estimação? O figuro: súcia de todos, irmãos, repartindo tudo, homens e mulheres, em coragens em amores... Cujos à bala! — quem safado for... — “Vida nova, Surupita, consoada...” O Dalberto, desprevenido e correto, em fato daquela gente sem escrúpulos e os compromissos de bordel... Um Julinho Lúcio ficara gostando de uma rapariga, em São-Francisco, e ela dele; tirou a rapariga da casa-de-mulheres, foram viver honesta vida juntos, numa casinha. E então veio Jonho, de apelido Mamatôco, que tinha sido constante freguês dela — chegou em hora em que o Julinho não estava, fez medo, gozou a rapariga quanto se quis; e quando chegou o Julinho, foi uma cena de discussão. O Jonho dizia que a rapariga era estadual. O Julinho gritou que ela era dele, que a fumaça ali corria por conta dele. E pôs o Jonho p’ra fora portas. O Jonho foi na faca, o Julinho teve de matar o Jonho... O Dalberto formava como desamparado, sujeito a essas ruindades e perigos. — “Surupita, você não acha?...” O que era então que o Dalberto cobiçava?
— Com ela viver vida regrada, a sossegada vidinha, pelo direito, esquecidos do passado todo... O bom, a gente ter filhos, uns três ou dois... Filho tapa os vícios...
— Aí... As belezas e luxo que ela exalta, agora, isso como é que você podia sustentar?
— Mas não quero! Nem ela não carece, nem ela mesma havia de querer. Que ideia essa, Surupita...
— Mas você não conheceu ela assim, não ambicionou assim? De que foi que você gostou nela, Dalberto?
— Um não gosta dos enfeites nem das roupas! Admiro de você me referir isso, Surupita...
— A bom, não firmei, não queria contrariar... Agora, por explicar o pouco melhor, relevando o que não for de minhas palavras... Por um exemplo, Dalberto, só estava achando, assim: você se amasêia com a Analma, vai com ela p’ra o fundão do Abaeté, bota ela no diário do trabalho, cuidando de casa, tendo filho, naquela dura lida do sempre... Mesmo por bem, não duvido, que ela queira, que ela apreceie isso... Aí, você não tem receios de que ela então fique sendo assim como uma outra pessôa boçal, se enfeiando até, na chãíce, com perdão pelo que digo, e você acaba desprazendo, se enjoando?...
— Por jurar, que eu nunca pensei nesta minha cabeça uma espiritação estrambótica assim, Surupita... Sei o que hei! Querer-bem não tem beiradas... Você está é medindo o que não é da gente...
E o Dalberto ria, soltado. Tão seguro só assim de si — isso era o que Soropita admirava. O Dalberto era capaz: pegar na Analma, de olhos fino verde, como avenca-rainha, e aquele brilho todo de fantasia em volta, que tinha mais poder do que uma bebida brava, país de romance, e levar a Analma para a beira do mato — do jeito que se agarrasse um pássaro bonito, de lindo canto, e tirasse dele as belas penas e botasse dentro de um balaio... Que nem caçar um vagalume voando lanternim como a surpresa de Deus no absurdo da noite, e para guardar na algibeira, já besouro frio e apagado... E que tinha ele, Soropita, com essas contas, se não que somente devia era desejar ao Dalberto o desejo dele, e, em casos, funcionar em toda ajuda, o amigo carecendo?
— Ao que a justa razão, Dalberto. Mais eu não estava te experimentando, não. Respeito uns sentimentos, sem estorvo, e em dou meu acordo sem metades. Que se você, no por isso, precisar qualquer, é só falar a fala, ou mandar me chamar!
Soropita se levantou, alto, avante. Dalberto também. Aí era como se eles estivessem se abraçando, no despedir para uma bôa noite, os olhos e modos de Dalberto aquietados: Surupita auxiliando, regrava tudo garantido, aquele amigo ajuizado, em grande, com a coragem de tú-tigre e dedo pronto em dez gatilhos, ideias, a mais o governo de uma fama — que todo o mundo muito tremia só de meio nome dele escutarem! — “Mano irmão...” — só disse. Soropita levando-o até à porta do quarto-da-sala, pondo-lhe a mão no ombro, tornando a declarar: — “P’ra o certo e o duvidoso...” Soropita — o rei nas armas.
Soropita se inteirava, congraçado, retranquilo, Doralda era sua fome pedida, nem os salteios do dia, de fadiga, pareciam deixar rastro, a vida era um vibrar de coisa, uma capacidade. Por propósito, ele se poupava de qualquer demasia de pressa. Doralda permanecida no quarto, esperando. Ele ainda foi à sala de fora, foi vigiar se as portas e janelas estavam bem-fechadas. Assoviava, em surdinas, cantarolou: “...entre as coxas escondeu uma flôr de corticeira...” Voltou; vendo-se sem tremor nas mãos: bebeu meio copo d’água. Doralda já estaria deitada, no canto da cama, querendo que ele viesse, entrasse. Abriu a porta, devagar, entrou.
Doralda aparecia ali, em pé, perto da porta, assaz toda vestida, com o colar, o cinto preto, os sapatos de alto salto. Assim ele quase por um choque: Doralda levava dedo à boca, recomendando manha de silêncio, e se resumia pra trás, um tanto; mas seja sorria, queria somente que ele apreciasse, como conforme estava disposta e galante, para ele, para o seu regalo. Soropita tramelou a porta. Preparou os olhos. Ele tinha os desejos de falar as alegres artes sem o sentido de todos, sem constâncias. Aprovando com a cabeça. Sabia de seu peito respirar.
Doralda veio para ele, para uns beijos. No tacto da cintura dela, senseando, enquanto a abraçava — Soropita agora era quem punha dedo em boca, pedindo segredos, tão bem à sorrelfa, como cochichou: — “Será que ele desconfiou, a ver, de tu na Clema, o Dal?” —, e não sorriu, que dordoíam nele os prazêres finíssimos; trasteava quase vergonhoso. — “Notou nem não, Bem. Que ele que está longe de saber...” Com o renuído, ela mermava os olhos, tomava um arzinho, o descoco, aquele narizinho. À leal, num derretimento dum dengo, que Soropita conhecia, queria. Comum que a beijou. Assoprou então: — “Espera...”
Tirou o paletó, pendurou bem. Tirou o cinturão, pondo cuidado nas armas. Guardava o cano-curto debaixo do travesseiro. Tirou as botas, sem consentir de Doralda ajudar. Arrumou as botas, escrupuloso. Ah, ele mesmo sucedia conhecimento de ter de ser assim um homem sistemático. Mais que arrumou a til as botas, em parelha, esta encostada na outra. Aquelas botas estavam empoeiradas, ressujas da viagem; tivesse hora, tivesse um trapo, limpava. Doralda, quieta, em pé, acompanhava-lhe o bem-estar dos movimentos, com os olhares. Doralda, a mais bela — mimosa sem candura. Em cima da cômoda, o candeeiro repartia o espaço do quarto em bom claro e bôas sombras. Soropita se recostou, com um intrejeito de desabafo. — “Acende um cigarro pra mim...” — ele isso disse, adrede mole, melhormente.
Doralda primeiro riu — sua risada medida bonita, que aumentava, risada de mais viveza. Daí logo desconhecendo Soropita, nunca acontecia assim, ela atentava numa semelhança diferente; mas que não a desnorteava. A muito curiosa: que menos modos aqueles, que era que ele queria? Ela discernia essa feição em homens, o surdo duma agitação, que era rogo de paciências. Revendo sutil a espécie de tremor, que Soropita, forte, conseguia moderar. Com todo o súbito, que ele mandou:
— Doralda, agora tu tira a roupa...
Doralda caminhou para a cômoda: ia abreviar a luz do leo-cádio.
— Não, não. Eu quero até muito esclarecido. Tira tua roupa, certo. Nunca te vi nua total, de propósito.
— Pois, Bem, tiro.
O ar de Doralda tomou vaidades. Em suave no ligeiro dos dedos, se via sua satisfação. Saíu do vestido. Sempre mesmo de pé, se abaixou, tirou um depois o outro sapatinho. As peças brancas. Aí nua estava. Deixara só o colar. Sorria sendo, no meio do quarto. Com as mãos, escorregou, se sentindo os seios, a dureza. E começou a se apalpar, aqui e ali: — “Estou muito gorda, ficando gorda por demais... Tu, assim mesmo, assim, Bem, tu me gosta?”
— Deixa. Vira para cá. Não, fica aí mesmo, onde você estava...
— De vez tu não me abraça e beija, Bem? Tu não quer?
— Depois. Te beijar às pressas, a já, aos tontos me tonteio. Você é o estado dum perfume. Respirar que forma uma alegria...
— Não, eu não, Bem. É o jasmins...
O cheiro da aglaia e da bela-emília passava pelas gretas da janela, parava devagaroso no quarto. Doralda já não estava rideira. Só a simples, com mão e mão, se tapava os seios, o sexo. Seus olhos desciam. Seu cabelo se despenteava.
— Até o nome de Doralda, parece que dá um prazo de perfume. ...Roda das flores — de flôr de toda cor... — você podia cantar, você dansava, no meio das meninas... Eu puxava você, a pois, te trazia, a gente p’ra aqui, em camarinhas... Tu em tanto gosta de mim?
— Bem, tu não vê? Acho que gosto demais da conta... Só posso é gostar de você, nas miudezas de minha vida toda...
— Todo o mundo gostava de você... Tu é a bebida do vinho... Ah, então você gostou de mim por quê? Só se no estúrdio da primeira vez que me olhou?!
— Tanto fui te vendo, Bem, deduzi: este é o meu, que é, sem a gente se saber... Eu gostei na certeza. A pois, foi?
— Mas, depois, no estado daquele dia, tu teve os outros!
— Mas, Bem, aqueles logo vieram... Aí eu era muito freguesada, Bem, era uma das que eles apreciavam mais... Ah, uma pode errar de boiada, por ir-se atrás de boiadeiro...
— Por isso, que te chamavam de Dadã e de Garanhã?
— Era. Mas mais me chamavam de Sucena. Também, tu não havia de querer que tua mulherzinha fosse uma bisca desdeixada, sem valor nenhum...
— Nunca a gente tinha conversado o entendimento destas coisas. Hoje, sim. Tinha nunca mandado você estar desse jeito, p’ra a verdade do se saber... É jus?
— Bem, o que tu quer. Que vejo que tu não tem vergonha de mim... Com palavra não se despreza...
— A quanto quero, que não mando: agora, caminha, quero te ver mais, o que não canso — caminha, p’ra mim...
Daí Doralda, sem ao menos rir, andou pelo quarto. Desde ia e vinha, inteira, macia, sussa, pés de lã, seus pezinhos carnudos, claros que rosados. E ela — tantamente. Por querer, sem pejo, tomava um langue, ou aumentando o requebro, o chamativo de todos os jeitos — “Assenta, minha nega. Me responde.” Nega, ela não ficara feia, por no muito amor desusar sua virtude. — “Simples que estou aqui, Bem, sempre...” — e Doralda se sentou no chão, perto da cama. Cruzara as pernas, brincava de curvar os dedos dos pés. Ela mesma olhou seu umbigo, e meneou o corpo, de divertimento. Ao fôgo dos olhos de Soropita, as pontas de seus seios oscilaram.
Soropita recostado, repousado, como num capim de campo. — “Tu é bela!...” O voo e o arrulho dos olhos. Os cabelos, cabriol. A como as boiadas fogem no chapadão, nas chapadas... A boca — traço que tem a cor como as flores. Os dentes, brancura dos carneirinhos. Donde a romã das faces. O pescoço, no colar, para se querer com sinos e altos, de se variar de ver. Os doces, da voz, quando ela falava, o cuspe. Doralda — deixava seu perfume se fazer. Aí, ele perguntou:
“— Tu conheceu os homens, mesmo muitos?” “— Aos muitos, Bem. Tu agora está com ciúme?” “— A ver, nunca tu esteve com o Dalberto?” “— Absoluto que não, Bem. Este nunca eu nem vi, lá, na casa da Quêlma...” “— Ah, mas você morou em outras casas?” “— Só estive três meses na Lena, e dois na Maria Canja, e depois nem bem um tempo na da Quêlma. Aí, você apareceu...” “— Quem é que ia lá?” “— Mas tantos, Bem. Como é que posso contar?...” “— Iam uns de quem tu gostava mais, conhecidos?” “— Amigada nunca estive, sempre não quis... Tu foi o primeiro homem que eu prezei de gostar com amor...” “— E os todos?” “— Tinha os certos, e os rareados, e os que vinham em avulso, e depois a gente nunca via mais. Mas uma coisa posso te dizer, Bem: quem ia comigo uma vez, sempre que podia sempre voltava... Nunca fizeram pouco em mim. Diziam que eu tinha condão...” “— Você esteve com um José Mendes?” “— Pelo nome, assim, não me alembro, Bem. Se visse outra vez, sabia... E tantos davam nome trocado, p’ra enganar. Como é que eu posso saber?” “— Esteve com seo Remígio Bianôr alguma vez?” “— Não, com esse não.” “— Com quem você sabe o nome e sabe que esteve, de boiadeiros conhecidos?” “— Mas, Bem... Tantos...” “— Mas, fala!” “— Bom, tu conhece, por exemplo, o João Adimar?” “— Sei; esse?” “— Pois ele me vinha muito... Se apaixonou...” “— E o Boi-Boi, companheiro dele?” “— Demais.” “— E tu gostava de algum deles?” “— Bem, eu gostava por serem homens, só. Rabicho nunca tomei por nenhum...” “— E faziam com você o que queriam, tu deixava!” “— Era. Pois, eu ali, não era p’ra ser?... Tu está com ciúme em ódio?” “— Mas você, você gostava!” “— Gostava, uai. Não gostasse, não estava lá...” “— E hoje? Hem! E agora?!” “— Hoje em dia gosto é de você... Quero você, Bem, tu p’ra mim, a vida toda. Não posso que você um dia canse de mim!...” “— Mas você não sente falta daquela vida de dama?...” “— Nenhuma, Bem. Com você, não sinto perda de regozijos nenhuns... Conforme que sou. Mas tu sabe que eu sou tua mulher, direita, correta...” “— Com o preto Iládio, você esteve?” “— Iládio... Iládio... Nunca vi branco nem preto nenhum com esse nome...” “— Carece de lembrar não, não maltrata tua memória. Mas tu esteve com pretos? Teve essa coragem?” “— Mas, Bem, preto é gente como os outros, também não são filhos de Deus?...” “— Quem era aquele preto Sabarás?” “— Ah, esse um, teve. Vinha, às vezes...” “— Mas, tu é bôa, correta, Doralda... Como é possível? Como foi possível?!...” “— Não sou.” “— É! Tu é a melhor, a mais merecida de todas... Então, como foi possível?...” “— Gosto que tu ache isso de mim, Bem. Agora deixa eu te beijar, tu esbarra de falar tanta coisa...”
Doralda avançava, com gatice, deslizada, ele a olhava, cima a baixo. — “Tal, tira tua mão...” Ah, estudava contemplar — a vergonha dela, a cunha peluda preta do pente, todas as penugens no liso de seu corpo. Os seios mal se passavam no ar. O rosto em curto, em encanto, com realce de dureza de ossos. As ventas que mais se abriam, na arfagem. A boca, um alinhar de onde vincos, como ela compertava os beiços, guardando a gula. Os dentes mordedores. Toda ela em sobre-sim, molhando um chamamento. O envesgo dos olhos. Só sutil, ela pombeava. Soropita abraçou-a: era todo o supetão da morte, sem seus negrumes de incerteza. Soropita, um pensamento ainda por ele passou, uma visão: mais mesmo no profundo daqueles olhos, alguém ria dele.
Agora, depois, ele a tornava a abraçar. Era uma menina. Era dele, sua sombra dele mesmo, e que dele dependia. Molhada de suor. Punha um dedo na boca. Seu rosto guardava um ar, o mais feito infantil, como é raro mesmo nas crianças. “Tralalá... Menina bonita, não põe pé no chão, não casa comigo, não tem coração...” Dola...
Doralda vestia a camisola. Seus olhos procuravam o desejo de Soropita. Adivinhava que ele queria dizer uma coisa.
— Escuta, Doralda, você era capaz de vir comigo para longe, para um lugar sem recurso nenhum, muito distante, feio, mato bruto? Você...
— P’ra o Campo Frio? Eu sei, Bem. Bobagem tu ter escondido de mim, Tiantônia em segredo me contou... Vou, demais. Em desde que seja com você, vou qualquer hora p’ra qualquer parte, e vou contente de verdade, sem sobrosso nenhum...
— Não sei se é. Só um princípio de pensamentos.
— Bem, meu Bem. Mas, amanhã cedo tu me explica direito o restante da novela do rádio?
Amanhã, contava. Mesmo porque seus olhos começavam um cansaço de recompensa, e era bom entrar em pequena paz para a pedreira da noite, podia deixar para diante uma porção de assuntos que precisava de arrumar na cabeça, pensar bem, resolver. Doralda se abraçava com ele, queria dormir aconchegada. Gostava que Doralda pudesse ficar dormindo, compridas horas, muito mais tempo que ele, dormindo e acautelada, ali no quarto, sem pensar nada que ele não soubesse, não fazer nada que ele antes não aprovasse; nada, porque tudo na vida era sem se saber e perigoso, como se pudessem vir pessoas, de repente, pessoas armadas, insultando, acusando de crimes, transtornando. Dormir, mesmo, era perigoso, um pôço — dentro dele um se sujeitava. Mas que Doralda não conversasse com ele, agora, que não conversasse normal, coisas de casa, dos outros, do diário, projetos de vida, o trabalho na fazenda, gente do Ão. Não falasse de tudo que fosse a vida fora deles dois no quarto, na cama. Se falasse, era como outra Doralda voltando, se demudando, Doralda que conversava com as pessôas, que as pessôas conheciam, que todos sabiam. E ele carecia de tempo, dormir, descansar, ficar forte, resolver tudo. Um dente lhe doía um pouco, uma parte da cara. A língua procurava experimentar outro dente: parecia meio solto. Arreliava, aperreava. Podia ficar dias se entristecendo com aquilo. Contasse a Doralda, já sabia: Doralda tinha um modo simples de achar que tudo se remediava sem amofinamento, sem motivo para um se aborrecer fora de conta: — “Você vai, amanhã, no Andrequicé, Bem, está lá aquele dentista José Leite, tratando, você mesmo não me disse?” E se estivesse com a boca cheirando mal? Bafejava. Não podia saber. Não podia perguntar a Doralda, Doralda respondia que não estava. Por que, então, o corpo da gente não obedecia à vontade da cabeça, sempre e em tudo por tudo — como devia de ser: as partes, deviam de estar sempre sentindo e fazendo, com prazer de mocidade, o que a gente mesmo quer. Não ter dôr. E um devia de poder pensar somente naquilo que queria, que devia. Saudade de aqueles dias, havia tanto, tanto tempo, no São João da Vereda — saía, montava a cavalo, galopava, a largura da vida de um assentava por em volta, como um baixão de pé-de-verso. Jõe Aguial, Seo Zosímo, Campo Frio. Por Doralda, não, pois ela mesma estava em acordo que eles se mudassem para lá, para aquele mundo-longe do Goiás, nem ela perguntava bem por que razões principais ele preferia negociar aquela berganha de terras. — “Nunca vi o céu de lá, o chão de lá... Com você, Bem, eu quero ir, eu vou. Pois vamos...” Ela disse aquilo, tinha umas lágrimas nos olhos, mas eram de alegria, ele enxugara aquelas lágrimas. Doralda como se fosse uma noiva dele. Se ele pudesse ter, sempre, sempre, sem fim, sem nunca esbarrar, a sua força de homem, calor de pessôa bebida, com Doralda nos braços, então, era o único jeito de não precisar de reter má lembrança nenhuma, pensamento ruim; um alívio definitivo, como o do Vivim, medidor-de-terras, cachaça em mais cachaça, ele mesmo aos pouquinhos se acabando. Ou então, aquilo que Doralda tinha falado, mais de uma vez, muito falava: — “Bem, eu acho que só ficava sossegada de tu nunca me deixar, era se eu pudesse estar grudada em você, de carne, calor e sangue, costurados nós dois juntos...” Isso, ele gostava. Sem Doralda, nem podia imaginar — era como se ele estando sem seus olhos, se perdido cego neste mundo. Tudo devia de ser uma regra: levantar muito cedo, ainda com o escuro da noite, trabalhar o dia inteiro, no mais atarefado, cansar as forças; de noite, comia, iam dormir abraçados, sem antes fazer nada, como dois irmãos. Dizia: — “Vamos passar um mês inteiro, não abraçar nem beijar, não fazer nada, regrando a vida da gente em sério costume”; assim conforme se cumpre — firmeza de jagunço, ou promessa feita a santo. Então, se pudesse se privar assim, ficava forte, toda hora estava seguro de estar direito: só a boa disposição e coragem! Tinha vergonha de dizer aquilo a Doralda, propor, ela perdia o respeito a ele, achava que ele estava pegando mania. — “Mas, por que, Bem? Tu não gosta? Eu não gosto? Tu enjoou de mim?!...” Queria ser como o Dalberto, toda simplicidade. Analma — era como uma sua parenta, se casava com o Dalberto. Ele nunca deixava de gostar de Doralda, nunca; mas, já tinha experimentado: se tirava de ideia aqueles pensamentos de estar com ela em cama, então, ficava, aos poucos, sendo como se ela estivesse muito longe, nem de carne e ôsso, só um costume, como porque era mulher dele; e aí ele começava a espiar para outras, com um desejozinho por esta ou por aquela, no Ão, no Andrequicé, pelas beiras de estrada, por quase todas que via, a vontade de conhecer como eram, dar um beijo, estar com cada uma daquelas só uma vez, uma vez pequena, mas a forte vontade. Doralda desconfiava? Ela adivinhava tudo. Mas nunca havia de dar desgosto nenhum a Doralda, morria por não dar. Aquelas figuras que vinham na ideia pulavam diante dos olhos dele: porrêtes, facas de ponta, tudo vinha para cima de Doralda, ele fazia força para não ver, desviava aquelas brutas armas... Então, ele podia ver alguém matar, ferir Doralda? Ele podia matar Doralda? Ele, nunca! Ele estava ali, deitado. Seco. Sujo. Sempre tudo parecia estar pobre, sujo, amarrotado. As roupas. Por bôas e novas que fossem, parecia que tinha de viver no meio de molambos. Aí, ele sabia que não prestava. Mas, cada vez que estava com Doralda, babujava Doralda, cada vez era como se aqueles outros homens, aqueles pretos, todos estivessem tornando a sujar Doralda. E era ele, que sujava Doralda com a sua semente, por aí ela nunca deixava de ser o que tinha sido... Era capaz de fazer isso com uma sua irmã? Era capaz de imaginar um parente dele, um amigo mais velho, mesmo o Jõe Aguial, fazendo aquilo com Doralda? Se Jõe Aguial tivesse estado com Doralda, mesmo muito antes, mesmo vinte anos que fosse, ele regrava o Jõe Aguial... Doralda, devia de ir com ela para o Campo Frio. Devia, não devia... Tempo tinha para pensar. Redormia.
Menos que a manhã não vinha longe, o fresquim frio, os galos pondo canto, o ar cheiroso dos Gerais se trazendo de todos os verdes, remolhada funda de orvalho a poeira das estradas, pesada como um reboco, e as vacas berrando, as cabras bezoando, no meio dos pios pássaros. Um frio sem umidade nenhuma, a gente aguentava sair sem roupa que fosse, para o livre, não tremia. Mal apontando o sol, já Doralda estava levantada, os pezinhos nús nas sandálias, os cabelos lavados, atado neles um lenço amarelo vivo. A amigas palavras e a risos, ela dava café a Soropita e Dalberto, que saíam pelos animais de sela, consoante conversavam. Dalberto não queria esperar o almoço, sua pressa vinha de um desejo, que só de entrevisto em seus olhos cada um respeitava. No se despedir, ainda pediu, à beira da cerca, duas flores, que uma pôs no peito e enfeitou com a outra a testeira da mula rata. Montou e tocou, era um cavaleiro guapo, marchava.
Soropita não estava bem, o princípio daquele dia mareava-o mal num dramar. Os assuntos, tantos; e a ida do Dalberto era capaz de sempre ser um rumo de tristeza, de pressentimento; quem sabe era a derradeira vez que estava encontrando aquele bom amigo. Os passopretos que sarapiavam, rodeavam a casa com seus gritos, felizes fixos, só é que o negrume de asas, como esses roubam nas plantações. A fôgo-apagou retomando o constante chamado, ia falar assim o dia a dentro, toda cristã; e, mais perto, o cúo prolongado das pombas-de-casa, feito um agouro. Era hora de montar e sair, cuidando de tudo, passar na vendinha, vigiar depois os trabalhos, as obrigações, as vacas. O Ogênio e o rapazinho Bio tiravam leite. Que um esbarrasse, viesse arrear o cavalo branco, o Apouco. Ao melhor, podia ir ao cerrado, fazer exercício de atirar, de toda distância, nas frutas de lobeira, que se espatifavam a cada bala, nem uma ele não errava. Mas nem para isso resumia disposição. Não podia tomar a resolução do Campo Frio. Não tinha direito de fazer, era uma judiação com Doralda, que não merecia. Um homem não é um homem, se escapa de não pensar primeiro na mulher. Não tirava um ânimo para refletir em espécie nenhuma, logo naquele dia. Só a cabeça desertada, e a bambeza. A uma espécie de receio, encoberto, vago, não sabia de que — arregosto de amarugem. Bebia mais café. Se sentava na rede, se recostava. Era um martírio, um estar assim tão esmorecido. Doralda passava, sorria, dava de cantar. Doralda, de qualquer forma, gostava que ele parasse por ali perto. Por mesmo isso, que ela era tão bôa, tão de acordo, com tudo, por amor a ele. O Campo Frio... Ah, seu corpo mesmo se gasturava: os renovados trabalhos, um castigo bronco, a gente estranha, aquele fim-de-mundo, quase no demeado dos bugres, a ideia agora lhe parecia acima de seu compor. Então, ia para lá, escorraçado. Ia, por não prestar. Nem sabia, nem queria saber mais o motivo por quê. Mas, de que medonho jeito conseguir começar a vida lá? Mas, como ia ficar aqui, se sabia que não podia? Nada não adiantava. Somenos tivesse filhos, uma porção de meninos, brincando, reinando, filhos de Doralda com ele. Doralda, amiga de amor, não estranhava o dividido de trabalhos. Se ele adoecesse, um dia, Doralda continuava gostando dele? Doença grave, demorada, vinham as visitas, os remédios, muitos sofrimentos, Doralda continuava gostando, com o afeto? Mesmo uma doença nojenta, essas de mal-de-lázaro, tísica, ferida-brava? Havia doentes de feder, um Pedro Matheus, sem nem um pedacinho de pele sã, todo ferida uma só, fôgo-selvagem, aquele-um era casado, a mulher tratava dele com branda misericórdia. Sobre se ele, Soropita, purgasse uma maldição dessas, Doralda ainda gostava dele? Podia? Por que gostava? Se então ela se lembrasse das horas de gozo dos dois juntos, não tinha asco? Ele, Soropita, transformava asco, se Doralda fosse que pegasse aquela doença? Não adiantava pôr na cabeça o faz-de-conta, sem paga nenhuma um se maltratava. Seo Zosímo, tão lá longe, tinha seus filhos, agora tramava de vir, mais para perto de civilização. Seo Zosímo era um definitivo homem. Só de se olhar para ele, um via que ele podia espiar em frente o resto, sem chaça, costeando a vida, firme em suas duas pernas. No Ão, no mundo, não havia sossego suficiente. Tanto que podia ser servido excelso, mas faltavam os prazos. O inferno era de repente. O medo surgindo de tudo. Oé, hem? Ah, e mas que saçanga, aquela, súcia de uns homens, o estrupício de cavalhada. Aí — quem eram?!
— Ô de casa!
Todos cavaleiros, chegando de galope, uma meia-dúzia. Que é que podia, que havia? Era a gente do Dalberto. José Mendes, os outros. O preto Iládio, logo ele. Perguntavam pelo Dalberto. Porque tinham vindo: porque o Dalberto ficara de sair do Ão, de volta, tarde-noite, e não chegara no Azêdo até de manhãzinha. Mas como podiam ter se desencontrado? Tinham vindo pelo galho do Tem-Brejo, daí descruzaram. Que enredo aquela gente estava pensando? Que ele, Soropita, tivesse consumido o Dalberto, desaparecido? À pôita! Mesmo assim, a gente carecia de oferecer café, convidar se queriam desapear e entrar. Não queriam, agradeciam. Já tinham quebrado o torto. E Doralda que aparecia na janela, ela não devia de se mostrar assim, fosse tudo pelo amor de Deus, não devia. Soropita se chegava a ela, ele mesmo tinha vexame do que estava fazendo: — “Entra p’ra dentro, meu Bem, é melhor...” E Doralda, que parecendo uma criança que não sabe o que é hora e o que é menos-hora, cochichava-lhe ao ouvido: — “Ah não fica atenazado, Bem, nenhum desses homens eu nunca que não vi... Nenhum deles me conhece...” Suspo, Soropita saía ao pátio. Rehavia de obsequiar os companheiros do Dalberto. Todos esses, malmente à espera, reparando em tudo, solertes rapazes. E o preto Iládio, o negralhaz, avultado, em cima de uma besta escura. Estava sem a espingarda — para que precisava de espingarda? Truxo o olhando de riba, com aquela bruta perfilância, que grolou: — “Eh, Surrupita!...” — e de um lanço estendia a mão, ria uma risadona, por deboche, desmedia a envergadura dos braços. O olhar atrevidado. E falou uma coisa? — falou uma coisa — que não deu para se entender; e que seriam umas injúrias... O preto estava vendo que ele estava afracado, sem estância para repelir, o preto era um malvado. Soropita comeu o amargo de losna.
Nem podia responder ao com que eles se despediam, que saíam todos esgalopeando, Soropita entrava para sua casa. Andou na sala, deu duas idas. O negro Iládio o ofendera, apontara-o com o dedo, e ele não refilando... Se sentou na rede. Suava? Pagava por tudo. Vento mau o sacudia, jogava-o, de cá, de lá, em pontas de pedras, naquele trovoo de morte, gente com gritos de dôres, chorando e falando, muitos guinchos redobrados, no vento varredor? Doralda perguntava: — “Bem, tu não está bem?” — o que ele tinha? Empenhava uma força minguada, quase não queria dizer: — “Nada não, um mal-estar de raiva, um ranço de ojeriza...” Pediu um trisco de elixir-paregórico, como porque podia vir a doer-lhe uma cólica. — “Mas raiva por que, Bem?” Assentes os olhos de Doralda. Tomava o elixir, aquelas gotas n’água, o gosto até era bom, o cheiro, lembrava o pronto alívio de diversas dôres antigas. Mas, o sofrimento no espírito, descido um funil estava nas profundas do demo, o menos, o diabo rangendo dentes enrolava e repassava, duas voltas, o rabo na cintura? A essa escuridão: o sol calasse a boca... Levantou-se. — “O preto me ofendeu, esse preto me insultou!” Ah, com arrependimento — que não devia de ter fraquejado para essa queixa. Vigiava Doralda: ela devia de estar desprezando o marido, tão pixote, que era afrontado lá fora de portas, e dera ponto na boca, e ainda vinha pra dentro de casa, sem talento, se consolar com a mulher!... Chorar fosse? Mas nem nunca tinha chorado, não sabia chorar. Rebaixado, pelo negro, como a gente faz com casal de cachorros senvergonhas, no vício do calor... — “Mas, Bem, o preto não fez nada, não destratou, não disse nada: o preto só saudou...” O Bio, assustadiço, vinha anunciar o cavalo pronto, ainda contava o que algum outro disse — que os vaqueiros tinham feito demora ali no arruado, estavam bebendo. De certo, voltavam. O preto bebia, e voltava, vinha mais. Capaz de descompor. Ah, esse sabia de Doralda, arreito, conhecia: bem que viu, logo reconheceu! O preto Iládio, Dalberto falara: era trabuz, um fulano-de-tal de corajoso. Soante aquele sofrimento de que ninguém podia ter ideia, padecendo como longas horas, surdo no barulho por trevas da ventania, a gente se destornava, tresvoltava, só escutava o berro triste dos zebús na muda do tempo, o tristepío de um passarinho depenado? Ah, não podia! Soropita, sem mesclar o rosto, entortava um olhar de olhos. Tinha suas armas, mas não voltavam a ele os rios da coragem. Só melhorou um espaço, revia as estrelas da claridade.
Hora era donde se sair sem estorvo? Os vinte-e-cinco! Só ele sofria, devagar, escondendo seu ser. Um fôgo, uma sede. E Doralda, contente pensando que tudo em paz, cantava outra vez. Os escárneos da sorte: e ele? — cantando entrar numas chamas dum fôgo?! Somando com as clemências de Deus. Só se chorasse e ia cantando, depois de loucuras? Medonho aquele preto — feito um pensamento mau. Mas Doralda estava ali, sustância formosa — a beleza que tem cheiro, suor e calor. Doralda cantava, fazia a alegria. O que ela, em instantes, falava: — “Bem, eu estou adoecida de amor...” — para abraçar, beijar e querer tudo. Doralda — um gozo. Estrondos, que voltava! — “Veada... Vaquinha...” — que ele exclamava, nesses carinhos da violência. Dele! Ela era dele... Constante o que tinha sempre falado: — “Se tu me chamasse, Bem, eu era capaz de vir a pé, seguindo o rastro de teus bois...” Homem ele era, tinha Doralda e os prazeres por defender, e seu brio mesmo, ia, ia em cima daquele negro, mesmo sabendo que podia ser p’ra morrer! Tinha suas armas. Nem que não tivesse. Ia no preto. — “Bronzes!” Teso, duro, se levantou, tirado a si vivamente. Aí ele era um homem meio alto, com as calças muito compridas, de largas bocas, o paletó muito comprido, abotoado, e o chapelão de aba toda em roda retombada, por sobre o soturno de seu rosto. Riscou um passo, semelhava principiar um dansar. — “Já vou, já volto...” “— Mas aonde, Bem, que tu vai?...” — “Bronzes!...”
Saía, cego, para dar esbarradas, rijo correndo, como um teiú espantado irado, abrindo todo caminho. Tremia nas cascas dos joelhos, mas escutava que tinha de ir, feito bramassem do escancarado do céu: a voz grande do mundo. De um pulo, estava em cima do cavalo alvo, éguo de um grande cavalo, para paz e guerra, o cavalo Apouco, que sacudia a cabeça, sabia do que vinha em riba dele, tinha confiança — e escarnia: cavalo capaz de morder caras... — “Bronzes! Com minha justiça, brigo, brigo...” Seus olhos viam fôgo de chama. E calcou mais na cabeça seu chapéu-de-couro, chapéu com nove letras — dezenove, nove — ta-patrava. O preto o matava, seu paletó ia estar molhado de sangues — que me importa! —: — “Honra é de Deus, não é de homem. De homem é a coragem!...” Meteu galope, porcos e galinhas se espaventaram. Um galopadão, como zoeira de muitos. Olhou para trás: dos baixos do riacho do Ão, só uma neblina, pura de branca, limpas por cima as nuvens brancas, também uma cavalhada. Morria, que morria; mas matava. Se o preto bobeasse, matava! E dava um murro na polpa da coxa, coxa de cavaleiro dono de dono, seu senhor! Seus dentes estalavam, em ferro, podiam cortar como uma faca de dois lados, naquela cachaça, meter verga de ferro no negro. — “Me pagam! Apouco, isto... Me paga!...” Rei, rei, o galopeio do cavalo, seguro de mãos. No céu, o sol, dava contra ele — por cima do sol, podia ir sua sombra, dele, Soropita, de braços abertos e aprumo, e aos gritos: — “Ajunta, povo, venham ver carnes rasgadas!...” Carnes de um e de outro, o que Deus quisesse, ele ou o preto... Morrer era só uma vez.
Sobre então, chegava no arruado, em frente da venda: a animalada reunida, quadrilha de cavalos, os vaqueiros já montados, iam saindo, todos armados, o preto Iládio no meio deles. Ahá, uah, Soropita, ele te atira... Mas que me importa?! Freou. Riscou. Um azonzo — revólver na mão, revólver na mão. O preto Iládio, belzebú, seu enxofre, poderoso amontado na besta preta. Ah, negro, vai tapar os caldeirões do inferno! Tu, preto, atrás de pobre de mulher, cheiro de macaco...
— Apêia, negro, se tu não tem caráter! Eu te soflagro!...
Ele declarou. Mas o preto Iládio exclamava, enorme — um grito de perdão! — rolava de besta abaixo, se ajoelhava:
— Tou morto, tou morto, patrão Surrupita, mas peço não me mate, pelo ventre de Deus, anjo de Deus, não me mata... Não fiz nada! Não fiz nada!... Tomo benção... Tomo benção...
E os outros vaqueiros, esbarrando num arrepio só, gritavam calados. Eles viam Surrupita, viam a morte branca, seu parado de cair sobre eles; de muitos medos se gelavam.
Mas o preto Iládio deitado na poeira, açapado — cobra urutú desquebrada — tremia de mãos e pernas. — “Tu é besta, seô! Losna! Trepa em tua mula e desenvolve daqui...” — Soropita comandava aquele grande escravo aos pés de seu cavalo. Igual a um pensamento mau, o preto se sumia, por mil anos. Urubús do ar comiam a fama do preto. Os outros vaqueiros, sensatos, não diziam nada, iam tocando estrada a fora, encordoados. O pobre do bom Iládio bambo atrás de todos.
Os do Ão que estavam ali, homens e mulheres, viam e não entendiam. Soropita levou a mão à sela, com o dedo sinalou uma cruz na capelada. Daí, mirou a arma que ainda empunhava — aquele dado de presente pelo Dalberto — o revólver que no fim não precisou de atirar. O cavalão branco se sacudia no freio, gentil, ainda querendo galopar. Soropita o afagou. Não esporeava, a bem dizer. Numa paz poderosa, vinha para casa, para Doralda. A presença de Doralda — como o cheiro do pau-de-breu, que chega do extenso do cerrado em fortes ondas, vogando de muito longe, perfumando os campos, com seu quente gosto de cravo. Tão bom, tudo, que a vida podia recomeçar, igualzinha, do princípio, e dali, quantas vezes quisesse. Radiava um azul. Soropita olhava a estrada-real. Virou a rédea. Falava àqueles do Ão:
— Amigo Leomiro, tem hoje quem vai no Andrequicé, ouvir o restante da novela do rádio?
— Tem não.
— Pois vou. Passo em casa, p’ra bem almoçar, e vou...

- João Guimarães Rosa, no livro "Noites do sertão". Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2013.
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