Vinicius de Moraes - Zélia Gattai

Vinicius de Moraes, Zélia Gattai e Jorge Amado, em 1973

Vinicius de Moraes

Graças a uma das visitas de Vinicius à nossa casa, salvou-se a série de canções para crianças, de sua autoria:

À beira da piscina, o inseparável copo de uísque ao lado, violão em punho, Vinicius cantava.

Faço um parênteses para me desculpar. Na afobação de querer contar logo a história que me veio à memória — como já devem ter percebido, não tenho anotações, tiro tudo da cachola à medida que as lembranças chegam — esqueci-me de pedir licença para, ainda uma vez, avançar no tempo. Peço agora, pois devo explicar como foi que as músicas infantis de Vinicius de Moraes se salvaram. Avanço tanto, tanto, que falo até de meus netos, os três que existiam na época: Mariana, Bruno e Maria João.

Nessa ocasião, o amor de Vinicius, sua mulher, era uma baiana, Gessy Gesse, a quem devemos a vinda do poeta à Bahia, onde até uma casa ele construiu, disposto a ancorar entre o mar e os coqueiros de Itapuã.

Estávamos à beira da piscina e Vinicius cantava — como foi dito — quando chegaram meus três netos.

Eu agora vou cantar umas musiquinhas para vocês, disse Vinicius às crianças, e começou: Era uma casa muito engraçada, não tinha teto, não tinha nada... Espera aí, interrompi, vou buscar um gravador. Assim dizendo saí ligeiro. Voltei em seguida, gravadorzinho ligado e ele recomeçou: Lá vem o pato, pato aqui, pato acolá... Cantou todas as canções, intercalando entre elas uma chama, da: Esta é para Marianinha!... Esta é para Bruninho!... Esta é para Maria João!...Encantadas, as crianças ouviam as músicas pela primeira vez, pois elas ainda não haviam sido gravadas naquela ocasião. Ao saber que não restara nenhuma gravação delas após a morte de Vinicius, entreguei meu cassete à Gilda Queiroz Matoso, última e amada companheira do poeta até seus derradeiros momentos. Gravação precária, porém a única que restou e é a que se ouve até hoje.

Vinicius tornou-se íntimo de Calasans Neto e Auta Rosa, adorava o casal, alugou casa em Itapuã antes de construir a própria, queria ficar perto deles.

A rua da Amoreira, onde moravam — e moram até hoje — Calasans e Auta Rosa, era um horror: lama, buraqueira e, como se isso não bastasse, havia esgoto a céu aberto.

Freqüentador assíduo da casa, inconformado com a situação dessa rua, Vinicius não teve dúvida, redigiu uma petição em versos ao prefeito de Salvador. No poema, verdadeiro primor, pedia-lhe atenção e carinho para a rua.

Combinou com Jorge, que conseguiu a publicação do poema-petição na primeira página do jornal A Tarde.


Petição ao Prefeito

Prefeito Clériston Andrade
A quem ainda não conheço: 
Quero tomar a liberdade
Que eu nem sequer sei se mereço 
De vir pedir,lhe, em causa justa 
Um obséquio que, sem favor 
Muito honraria (e pouco custa!) 
Ao Prefeito de Salvador.
Existe ali no Principado
Livre e Autônomo de Itapuã 
Uma ruazinha que, sem embargo 
Pertence à sua jurisdição
Uma rua não sem poesia
E cujo título é dar teto
A uma das glórias da Bahia:
O gravador Calasans Neto.
Dizer do estado dessa ruela
(Da Amoreira) eu não arrisco 
Porque sem esgotos, correm nela
Rios de ... — Valha-me o asterisco!
E isso é uma pena, Senhor Prefeito
Pois Calasans e sua gravura
Têm cada dia mais procura
De fato como de direito:
O que constrange os visitantes 
Com boa margem de estrangeiros
A, entre gravuras fascinantes 
Ver quadros nada lisonjeiros. 
Calce essa rua, Senhor Alcaide 
E eu lhe garanto que algum dia 
Pro domo sua, esta Cidade
O há de lembrar com mais valia. 
Na expectativa de que acorde 
Um novo "Cumpra, se" , sem mais 
Aqui se assina, muito ex-corde 
O seu, Vinicius de Moraes.

Tiro e queda, a resposta do prefeito foi imediata, em pouco tempo a rua de Auta e Calá foi consertada e asfaltada e, diga-se de passagem, ela foi, por algum tempo, a única rua asfaltada das imediações.

Naqueles tempos, a decantada beleza de Itapuã se resumia no mar, nas praias, nos coqueirais e nas canções de Dorival Caymmi.

Para festejar o acontecimento, Jenner Augusto e Luísa ofereceram um almoço ao qual Vinicius compareceu vestido de gari da limpeza pública, levando para Calá e Auta a petição, enquadrada.


- Zélia Gattai, no livro "A casa do Rio Vermelho". Rio de Janeiro: Editora Record, 1999.

Obras literárias ambientadas no campo

Em todas as línguas, grandes obras literárias foram criadas a partir da relação do homem com o campo
- por Susana Berbert I - edição: Vinicius Galera de Arruda | revista Globo Rural, caderno Cultura, 4 de fevereiro de 2015.
Grande Sertão: Veredas, de João Guimarães Rosa

De livros da antiguidade clássica como As bucólicas, de 30 a.C, até monumentos modernos como Grande sertão: veredas, de 1956, grandes obras literárias foram criadas a partir da relação do homem com a terra.


No Brasil, o interesse na produção de obras voltadas à natureza e ao campo sempre foi latente e manifesta-se desde a literatura colonial. “Em 1705, Música do Parnaso, de Manuel Botelho de Oliveira, contém o longo poema "A ilha de Maré", que exalta a excelência do clima, a fertilidade da terra baiana e a superioridade de suas frutas”, conta José De Paula Ramos JR., doutor em Literatura Brasileira e professor da Escola de Comunicações e Artes (ECA-USP).


Apesar da preocupação em retratar as paisagens naturais do país, segundo De Paula foi apenas a partir do Romantismo que o interesse pelo campo e pela vida rural se manifestou como uma corrente literária permanente. O chamado regionalismo foi fundado por escritores como Franklin Távora, José de Alencar, Visconde de Taunay e Bernardo Guimarães.


Mas foi no século XX, com a segunda geração modernista, que o movimento ganhou características mais definidas. Em meio a um período de modernização que teve início na República Velha e desdobramentos que duraram até a revolução de 1930, autores como Graciliano Ramos e José Lins do Rego tinham o propósito de transfigurar artisticamente a realidade.

O professor afirma que imaginário regionalista não é exclusividade brasileira, mas um fenômeno universal. “Na literatura internacional há inúmeros exemplos de obras dedicadas à vida e à paisagem camponesa”, diz. Como exemplo, ele cita o escritor francês Frédéric Mistral que no ano de 1904 recebeu o prêmio Nobel de Literatura pela suas obras ligadas ao ambiente natural da região de Provença, na França, e à cultura de seu povo.
Com raízes tão antigas, as obras ligadas ao campo continuam atuais e tangem temas que atraem os leitores do século XXI. O sucesso, que fez com que o estilo não ficasse restrito ao regionalismo, mas se perpetuasse em diversos livros que se tornaram clássicos da literatura brasileira e mundial, se deve ao diálogo constante que a literatura deve fazer entre tradição e atualidade. “Assim como a vida, a literatura se modifica com as transformações históricas. Daí decorre a retomada de temas já visitados, mas que se atualizam segundo novas perspectivas estéticas e ideológicas”, diz De Paula.

Pensando na vasta quantidade de obras situadas no campo e voltadas para a vida rural, fizemos uma lista com 16 dicas de leitura para você conhecer melhor o campo a partir da imaginação dos escritores.


As bucólicas, de Virgílio - foto: Editora Unicamp
1) As bucólicas
Em As bucólicas o leitor tem um encontro com a poesia pastoril, imbuída de musicalidade. Acredita-se que a coleção do poeta latino Virgílio foi publicada em torno de 39-38 a.C.

2) Grande Sertão: Veredas

Em 1952, Guimarães Rosa realizou uma viagem de 240 quilômetros pelo sertão do Brasil. Os dez dias ao lado de uma boiada ajudaram a inspirar Grande sertão: veredas. Publicado em 1956, o livro é tido como um dos mais importantes da literatura brasileira. A história narra a vida de Riobaldo, ex-jagunço que relembra suas lutas, medos e o amor reprimido por Diadorim.

3) São Bernardo

Publicada por Graciliano Ramos em 1934, a história é narrada em primeira pessoa pelo personagem Paulo Honório. Em mais de 250 páginas, ele conta ao leitor sobre sua vida e as decisões que tomou para melhorá-la até tornar-se fazendeiro.

4) Vidas secas

Também de Graciliano, Vidas secas, publicado em 1938, narra a miserável vida de uma família de imigrantes que é forçada a mudar-se por causa da falta de água. A escrita com poucos adjetivos remete ao ambiente árido e envolve o leitor na dura realidade enfrentada pelo homem no sertão.
O quinze,  de Rachel de Queiroz
foto: Grupo Editorial Record

5) O quinze

Publicado em 1930, o romance de Rachel de Queiroz baseia-se na intensa seca que assolou o nordeste brasileiro no ano de 1915 e conta a saga de retirantes que sofreram com a fome na época.

6) Os Sertões

Em 1897, Euclides da Cunha foi enviado ao norte da Bahia pelo jornal O Estado de S.Paulo para cobrir o conflito no arraial de Canudos. A expedição deu origem ao livro, considerado um dos grandes intérpretes do Brasil. A obra é dividida em três partes: a terra, o homem e a luta, e foi publicada em 1902. 
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7) Cacau

Publicado em 1933 e com um grande apelo social, Cacau é situado nas regiões cacaueiras no sul da Bahia. Narrado em primeira pessoa, o livro de Jorge Amado conta a história de José Cordeiro, também conhecido como Cearense, que trabalhava em uma fazenda da região que foi o grande polo brasileiro de produção do fruto.

8) O gaúcho 

O cearense José de Alencar, nascido em 1829, foi um dos autores que mais se debruçou na tentativa de registrar as regiões do Brasil em suas obras. Em 1870 com O gaúcho, explorou o Sul do Brasil, focalizando os Pampas, suas paisagens e tipos humanos. Logo em seguida, em 1871, foi publicado O tronco do ipê, que aborda a decadência da região do café no vale do Paraíba, no Rio de Janeiro do século XIX. Em 1872 foi a vez do interior paulista ser retratado nas obras de Alencar. Til, título do livro, é o apelido da jovem Berta, principal personagem da história que vive em uma fazenda no interior de São Paulo. Três anos depois foi publicado O sertanejo. A história se passa no Nordeste e tem como personagem principal Arnaldo Loureiro, vaqueiro cearense. Por meio do dia a dia de Arnaldo é possível ter um panorama da região na época.
Fogo-morto, de José Lins do Rego
 - foto: Editora Record

9) Fogo Morto

Considerado a obra-prima de José Lins do Rego, Fogo morto também é considerado uma das obras síntese do regionalismo brasileiro. Publicado em 1943, o livro, um dos cinco que integra o chamado “ciclo da cana-de-açúcar” do escritor, retrata a decadência dos engenhos de cana nordestinos e traça um perfil das figuras que giravam em torno dessa atividade econômica.

10) A escrava Isaura

Escrito pelo mineiro Bernardo Guimarães, o romance conta a história de Isaura, escrava branca dominada por Leôncio, seu senhor. Escrito em 1875, foi adaptado para televisão no ano de 1976 na novela A escrava Isaura.
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11) Lavoura arcaica

Lançado em 1975, o livro faz referência à parábola cristã o filho pródigo ao contar a história de André, um jovem que vive em conflito entre a paixão que nutre pela irmã e a rigidez de sua criação. Pressionado, ele decide abandonar a família, que vive no ambiente rural. O livro de Raduan Nassar ganhou diversos prêmios e é uma das principais referências da literatura brasileira contemporânea.

12) A bagaceira

Outro marco do regionalismo nordestino, A bagaceira, de José Américo de Almeida, foi publicado em 1928 e se passa entre os anos de 1898 e 1915, períodos de seca no Nordeste. A obra evoca o êxodo rural e o sofrimento vivido pelos sertanejos na época.

13) Auto da compadecida

A peça foi adaptada ao cinema e o filme
foi lançado em 2000 - foto: Editora Agir
A peça teatral de Ariano Suassuna se passa no Nordeste brasileiro e conta as aventuras da dupla João Grilo e Chicó. Escrita em 1955, é recheada de bom humor e da cultura local. Um filme adaptado da peça foi lançado 2000 é um dos maiores sucessos do cinema brasileiro.

14) As Vinhas da Ira

Publicada em 1939 pelo norte-americano Johan Steinbeck, As vinhas da ira é narrado durante a Grande Depressão dos Estados Unidos na década de 1930. A história contada é a da família Joad, que parte de suas terras em busca de trabalho nos pomares, algodoais e vinhedos da Califórnia. Além do livro, clássico, a adaptação do livro para o cinema se tornou famosa sob a direção de John Ford.

15) Orgulho e preconceito

Orgulho e Preconceito foi escrito por Jane Austen, famosa escritora inglesa que nasceu em 1775 no interior do país. O romance foi publicado em 1813 e se passa no final do século XVIII. Seu enredo gira em torno de Elizabeth Bennet, jovem de vinte anos que vivia com sua família em um ambiente rural da Inglaterra, e do seu romance com o jovem Darcy. A obra foi adaptada ao cinema e lançado em 2006 no Brasil sob o mesmo título do livro.

16)  Anne of Green Gables

Considerado uma obra juvenil, Anne of Green Gables foi publicado em 1908. A história fala sobre a vida de Anne Shirley, uma menina órfã de 11 anos enviada para crescer em uma fazenda. O romance da escritora Canadense L.M Montgomery é considerado um clássico e também foi adaptado para o cinema.
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Fonte: 16 livros ambientados no campo, por Susana Berbert I - Edição: Vinicius Galera de Arruda | revista Globo Rural, caderno Cultura, 4 de fevereiro de 2015. (acessado em 21.6.2016).

Tarantão, meu patrão... - João Guimarães Rosa

— Tarantão, meu patrão...


© Frank Earle Schoonover
Suspa! — que me não dão nem tempo para repuxar o cinto nas calças e me pôr debaixo de chapéu, sem vez de findar de beber um café nos sossegos da cozinha.
Aí — ... ai-te..." — a voz da mulher do caseiro declarou, quando o caso começou. Vi o que era. E, pois. Lá se ia, se fugia, o meu esmarte patrão, solerte se levantando da cama, fazendo das dele, velozmente, o artimanhoso. Nem parecesse senhor de tanta idade, já sem o escasso juízo na cabeça, e aprazado de moribundo para daí a dias desses, ou horas ou semanas. Ôi, tenho de sair também por ele, já se vê, lhe corro todo atrás. Ao que, trancei tudo, assungo as tripas do ventre, viro que me viro, que a mesmo esmo, se me esmolambo, se me despenco, se me esbandalho: obrigações de meu ofício. — "Ligeiro, Vagalume, não larga o velho!" — acha ainda de me informar o caseiro Sô Vincêncio, presumo que se rindo, e: — "Valha-me eu!" — rogo, ih, danando-o, êpa! e desço em pulos passos esta velha escada de pau, duma droga, desta antíquíssima fazenda, ah...
E o homem — no curral, trangalhadançando, zureta, de afobafo — se propondo de arrear cavalo! Me encostei nele, eu às ordens. Me olhou mal, conforme pior que sempre.
— "Tou meio precisado de nada..." — me repeliu, e formou para si uma cara, das de desmamar crianças. Concordei. Desabanou com a cabeça. Concordei com o não.
Aí ele sorriu, consigo meio mesmo. Mas mais me olhou, me desprezando, refrando: — "Que, o que é, menino, é que é sério demais, para você, hoje!"
Me estorvo e estranhei, pelo peso das palavras. Vi que a gente estávamos era em tempo-de-guerra, mas com espadas entortadas; e que ele não ia apelar para manias antigas. E a gente, mesmo, vesprando de se mandar buscar, por conta dele, o doutor médico, da cidade, com sábias urgências! Jeito que, agora, o velho me mandava pôr as selas. Bom desatino!
Nem queria os nossos, mansos, mas o baioqueimado, cavalão alto, e em perigos apresentado, que se notava. E o pedresão, nem mor nem menor. Os amaldiçoados, estes não eram de lá, da fazenda, senão que animais esconhecidos, pegados só para se saber depois de quem fosse que sejam. Obedeci, sem outro nenhum remédio de recurso; para maluco, maluco-e-meio, sei. O velho me pespunha o azul daqueles seus grandes olhos, ainda de muito mando delirados. Já estava com a barba no ar — aquela barba de se recruzar e baralhar, de nenhum branco fio certo. Fez fabulosos gestos. Ele estava melhor do que na amostra.
Mal pus pé em estrivos, já ele se saía pela porteira, no que esporeava. E eu — arre a Virgem — em seguimentos. Alto, o velho, inteiro na sela, inabalável, proposto de fazer e acontecer. O que era se ser um descendente de sumas grandezas e riquezas — um Iô-João-de-Barros-Diniz-Robertes! — encostado, em maluca velhice, para ali, pelos muitos parentes, que não queriam seus incômodos e desmandos na cidade.
E eu, por precisado e pobre, tendo de aguentar o restante, já se vê, nesta desentendida caceteação, que me coisa e assusta, passo vergonhas. O cavalo baioqueimado se avantajava, andadeiro de só espaços. Cavalo rinchão, capaz de algum derribamento. Será que o velho seria de se lhe impor? Suave, a gente se indo, pelo cerrado, a bom ligeiro, de lados e lados. O chapéu dele, abado pomposo, por debaixo porém surgindo os compridos alvos cabelos, que ainda tinha, não poucos. — "Ei, vamos, direto, pegar o Magrinho, com ele hoje eu acabo!" — bramou, que queria se vingar. O Magrinho sendo o doutor, o sobrinho-neto dele, que lhe dera injeções e a lavagem intestinal.
— "Mato! Mato, tudo!" — esporeou, e mais bravo. Se virou para mim, aí deu o grito, revelando a causa e verdade: — "Eu 'tou solto, então sou o demônio!" A cara se balançava, vermelha, ele era claro demais, e os olhos, de que falei. Estava crente, pensava que tinha feito o trato com o diabo!
P'r'onde vou? — a trote, a gente, pelas esquerdas e pelas direitas, pisando o cascalharal, os cavalos no bracear. O velho tendo boa mão na rédea. De mim, não há de ouvir, censuras minhas. Eu, meus mal-estares. O encargo que tenho, e mister, é só o de me poitar perto, e não consentir maiores desordens. Pajeando um traste ancião — o caduco que não caia! De qualquer repente, se ele, tão doente, por si se falecesse, que trabalhos medonhos que então não ia haver de me dar? Minha mexida, no comum, era pouca e vasta, o velho homem meu patrão me danava-se. Me motejou: — "Vagalume, você então pensa que vamos sair por aí é pr'a fazer crianças?"
A voz toda, sem sobrossos nem encalques. E ia ter a coragem de viagem, assim, a logradouro — tão sambanga se trajando? Sem paletó, só o todo abotoado colete, sujas calças de brim sem cor, calçando um pé de botina amarela, no outro pé a preta bota; e mais um colete, enfiado no braço, falando que aquele era a sua toalha de se enxugar.
Um de espantos! E, ao menos, desarmado, senão que só com uma faca de mesa, gastada a fino e enferrujada — pensava que era capaz, contra o sobrinho, o doutor médico: ia pôr-lhe nos peitos o punhal! — feio, fulo. Mas, me disse, com o pausar: — "Vagalume, menino, volta, daqui, não quero lhe fazer enfrentar, comigo, riscos terríveis".
Esta, então! Achava que tinha feito o trato com o diabo, se dando agora de o mor valentão, com todas as sertanejices e braburas. Ah, mas, ainda era um homem — da raça que tivera — e o meu patrão! Nisto, apontava dedo, para lá ou cá, e dava tiros mudos. Se avançou, àfrente, só avançávamos, afora, por aí, campampantes. Por entre arvoredos grandes, ora demos, porém, com um incerto homem, desconfioso e quase fugidiço, em incerta montada. Podia-se-o ver ou não ver, com um tal sujeito não se tinha nada. Mas o velho adivinhou nele algum desar, se empertigando na sela, logo às barbas pragas: — "Mal lhe irá!" — gritou altamente. Aproximou seu cavalão, volumou suas presenças. Parecia que lhe ia vir às mãos. Não é que o outro, no tir-te, se encolheu, borrafofo, todo num empate? Nem pude regularizar o de meu olhar, tudo expresso e distenso demais se passava. O velho achando que esse era um criminoso! — e, depois, no Breberê, se sabendo: que ele o era, de fato, em meios termos.
Isto que é, que somente um sem-medo, ajudante de criminoso, mero. Nem pelejou para se fugir, dali donde moroso se achava; estava como o gato com chocalho. — "Ai-te!" — o velho, sacudindo sua cabeça grande, sem com que desenfezar-se: — "Pague o barulho que você comprou!" — o intimava. O ajudante-de-criminoso ouviu, fazendo uns respeitos, não sabendo o que não adiar. Aí, o velho deu ordem: — "Venha comigo, vosmicê! Lhe proponho justo e bom foro, se com o sinal de meu servidor..."
E...
É de se crer? Deveras. Juntou o homem seu cavalinho, bem por bem vindo em conosco. Meio coagido, já se vê; mas, mais meio esperançado.
Sem nem mais eu me sonhar, nem a quantas, frigido de calor e fartado. Aquilo tudo, já se vê, expunha a desarrazoada loucura. O velho, pronto em arrepragas e fioscas, no esbrabejo, estrepa-e-pega. No gritar: — "Mato pobres e coitados!" Se figurava, nos trajos, de já. ser ele mesmo o demo, no triste vir, na capetagem?
Só de déu e em léu tocávamos, num avante fantasmado. O ajudante-de-criminoso não se rindo, e eu ainda mais esquivançando. Nisto, o visto: a que ia com feixinho de lenha, e com a escarrapachada criança, de lado, a mulher, pobrepérrima. O velho, para vir a ela, apressou macio o cavalo. Receei, pasmado para tudo. O velho se safou abaixo o chapéu, fazia dessas piruetas, e outras gesticulações. Me achei: — "Meu, meu, mau! Esta é aquela flor, de com que não se bater nem em mulher!"
Se bem que as coisas todas foram outras. O velho, pasmosamente, do doidar se arrefecia. Não é que, àquela mulher, ofereceu tamanhas cortesias? Tanto mais quanto ele só insistindo, acabou ela afinal aceitando: que o meu patrão se apeou, e a fez montar em seu cavalo. Cuja rédea ele veio, galante, a pé, puxando. Assim, o nosso ajudante-de-criminoso teve de pegar com o feixe de lenha, e eu mesmo encarregado, com a criança a tiracolo. Se bem que nós dois montados, já se vê? — nessas peripécias de pato.
Só, feliz, que curta foi a farsalhança, até ali a pouco, num povoado. Onde o destino dessa pobre e festejada mulher, que se apeou, menos agradecida que envergonhada.
Mas, veja um, e reveja, em o que às vezes dá uma boa patacoada. Por fato que, lá, havia, rústico, um Felpudo, rapaz filho dessa mulher. O qual, num reviramento, se ateou de gratidões, por ver a mãe tão rainha tratada. Mas o velho determinou sem lhe dar atualmentes nem ensejos: — "Arranja cavalo e vem, sob minhas ordens, para grande vingança, e com o demônio!" Advirto, desse Felpudo: tão bom como tão não, da mioleira. No que — não foi, quê? — saiu, para se prover do dito cavalo; e vir, a muito adiante. Para vexar o pejo da gente, nessa toda trapalhada. Das pessoas moradoras, e de nós, os terceiros personagens. Mas, que ser, que haver? Os olhos do velho se sucediam. Que estragos?
Se o que seja. Se boto o reto no correto: comecei a me duvidar. Tirar tempo ao tempo. Mas, já a gente já passávamos pelo povoadinho do M'engano, onde meu primo Curucutu reside. Cujo o nome vero não é, mas sendo João Tomé Pestana; assim como o meu, no certo, não seria Vagalume, só, só, conforme com agrado me tratam, mas João Dosmeuspés Felizardo. Meu primo vi, e a ele fiz sinal. Lhe pude dar, dito: — "Arreia alguma égua, e alcança a gente, sem falta, que nem sei adonde ora andamos, a não ser que é do Dom Demo esta empreitada!"
Meu primo prestes me entendeu, acenou. E já a gente — haja o galopar — no encalço do velho, estramontado. Que, nisto de ainda mais se sair de si, desadoroso, num outro assomo ao avante se lançava: — "Eu acabo com este mundo!"
Aí, o mais: poeiras! Ao pino. E, depois de uma virada, o arraial do Breberê, a gente ia dar de lá chegar, de entrada. O vento tangendo, para nós, pedaços de toque de sinos. Do dia me lembrei: que sendo uma Festa de Santo. E uns foguetes pipoquearam, nesse interintintim, com no ar azuis e fumaças. O patrão parou a nós todos, a gesto, levantado envaidecid...
"Tão me saudando!" — ele se comprouve, do a-tchim-pum-pum dos foguetes, que até tiros. Não se podia dele discordar. Nós: o ajudante-de-criminoso, o Felpudo filho da pobre mulher, meu primo Curucutu; e eu, por oficio. Que, de galope, no arraial então entrou-se, nós dele assim, atrasmente, acertados. No Breberê.
Foi danado. Lá o povo, se apinhando, no largo enorme da igreja, procissão que se aguardava. O velho! — ele veio, rente, perante, ponto em tudo, pá! p'r'achato, seu cavalão a se espinotear, z't-zás...; e nós. Aí, o povaréu fez vêvêvê: pé, p'ra lá, se esparziam. O velho desapeou, pernas compridas, engraçadas; e nós. Meio o que pensei pus a rédea no braço: que íamos ter de pegar nos bentos tirantes do andor.
Mas, o velho, mais, me pondo em espantos. Vem chegando, discordando, bradou vindas ao pessoal: — "Vosmicês! ..." — e sacou o que teria em algibeiras. E tinha. Vazou pelo fundo. Era dinheiro, muitíssimas moedas, o que no chão ele jogava. Suspa e ai-te! — à choldraboldra, desataram que se embolaram, e a se curvar, o povo, em gatinhas, para poderem catar prodiglosamente aquela porqueira imortal.
Tribuzamos. Safanamos.
Empurrou-se para longe a confusão. No clareado, se tomou fôlego. Porém, durante esse que-o-quê, o padre, à porta da igreja, sobrevestido se surgia. O velho caminhou para o padre. Caminhou, chegou, dobrou joelho, para ser bem abençoado; mas, mesmo antes, enquanto que em caminhando, fez ainda várias outras ajoelhadas: — "Ele está com um vapor na cabeça..." — ouvi mote que glosavam. O velho, circunspecto, alto, se prazia, se abanava, em sua barba branca, sujada. — “Só saiu de riba da cama, para vir morrer no sagrado?" — outro senhor perguntava. O que qual era um Cheira-Céu, vizinho e compadre do padre. Mais dizia: — "A ele não abandono, que deve passados favores à sua estimável família". Ouviu-o o velho: — "Vosmicê, venha!" E o outro, baixo me dizendo: — "Vou, para o fim, a segurar na vela...” — assentindo. Também quis vir um rapaz Jiló; por ganâncias de dinheiro? O velho, em fogo: — "Cavalos e armas!" — queria. O padre o tranquilizou, com outra bênção e mão beijável. Já menos me achei: — "Lá se avenha Deus com o seu mundo... "
Montou-se, expediu-se, esporeou-se, deixando-se o Breberê para trás. Os sinos em toada tocavam.
Seja — galopes. Depois de nenhum almoço, meio caminho desandado; isto é, caminho-e-meio. Ao que, o velho: pá! impava. Aí, em beira da estrada-real, parava o acampo dos ciganos. — "Tira lá!" — se teve: aos com cachorros e meninos, e os tachos, que consertavam. No burloló, esses ciganos, em tretas, tramoias, zarandalhas; cigano é sempre descarado. No entendimento do vulgo: pois, esses, propunham cangancha, de barganhar todos os cavalos. — "A p'r'-a-parte! Cruz, diabo!" Mas o velho convocou; e um se quis, bandeou com a gente. O cigano Pé-de-Moleque para possíveis patifarias? Me tive em admirações. Tantos vindo, se em seguida. Assim, mais um Gouveia Barriga-Cheia, que já em outros tempos, piores, tinha sido ruim soldado. Já me vejo em adoidadas vantagens?
Assim a gente, o velho à frente — tipláco... t'plóco... t'plo... — já era cavalaria. Mais um, ainda, sem cujo nem quem: o vagabundo Corta-Pau; o sem-quefazer, por influências. A gente, com Deus: 11! Ao adíante — tira-que-tira — num sossego revoltoso. Eu via o velho, meu patrão: de louvada memória maluca, torre alta. Num córrego, ele estipulou: — "Os cavalos bebem. A gente, não. A gente não tenha sede!" Por áspera moderação, penitência de ferozes. O patrão, pescoço comprido, o grande gogô, respeitável. O rei! guerreiro. Posso fartar de suar; mas aquilo tinha para grandezas.
— "Mato sujos e safados!" — o velho. Os cavalos, cavaleiros. Galopada. A gente: 13 ... e 14. A mais um outro moço, o Bobo, e a menos um João-Paulino. Aí, o chamado Rapa-pé, e um amigo nosso por nome anônimo; e, por gostar muito de folguedos, o preto de Gorro-Pintado. Todos vindos, entes, contentes, por algum calor de amor a esse velho. A gente retumbava, avantes, a gente queria façanhas, na espraiança, nós assoprados. A gente queria seguir o velho, por cima de quaisquer ideias.
Era um desembaraçamento — o de se prezar, haja sol ou chuva. E gritos de chegar ao ponto: — “Mato mortos e enterrados!" — o velho se pronunciava.
Ao que o velho sendo o que era por-todos, o que era no fechar o teatro. — "Vou ao demo!" — bramava. — "Mato o Magrinho, é hoje, mato e mato, mato, mato!" — de seu sobrinho doutor, iroso não se olvidava. Suspete! que eu não era um porqueira; e quem não entende dessas seriedades? Aí o trupitar — cavalos bons! — que quem visse se perturbasse: não era para entender nem fazer parar. Fechamos nos ferros. — "Vigie-se, quem vive!" — espandongue-se. Não era. Num galopar, ventos, flores.
Me passei para o lado do velho, junto — ... tapatrão, tapatrão... tarantão... tarano... — e ele me disse: nada. Seus olhos, o outro grosso azul, certeiros, esses muito se mexiam. Me viu mil. — "Vagalume!" — só, só, cá me entendo, só de se relancear o olhar. — "João é João, meu patrão..."
Ai: e — patrapão, tampantrão, tarantão... — cá me entendo. Tarantão, então... — em nome em honra, que se assumiu, já se vê. Bravos!
Que na cidade já se ia chegar, maiormente, à estrupida dos nossos cavalos, lesbestada.
Agora, o que é que ia haver? — nem pensei; e o velho: — "Eu mato! Eu mato!" Ia já alta a altura. — "As portas e janelas, todos!" — trintintim, no desbaralhado. E eu ali no meio. O um Vagalume, Dosmeuspés, o Sem-Medo, Curucutu, Felpudo, Cheira-Céu, Jiló, Pé-de-Moleque, Barriga-Cheia, Corta-Pau, Rapa-pé, o Bobo, o Gorro-Pintado; e o sem-nome nosso amigo. O velho, servo do demo — só bandeiras despregadas. O espírito de pernas-para-o-ar, pelos cornos da diabrura. E estávamos afinal-de-contas, para cima de outros degraus, os palhaços destemidos.
Estávamos, sem até que a final. Ah, já era a rua. A cidade — catástrapes! Que acolhenças? A cidade, estupefata, com automóveis e soldados. Aquelas ruas, aldemenos, consideraram nosso maltrupício. A gente nem um tico tendo medo, com o existido não se importava. Ah, e o velho, estardalhão? — que jurava que matava.
Pois, o demo! vamos... O velho sabia bem, aonde era o lugar daquela casa.
Lá fomos, chegamos. A grande, bela casa. O meu em glórias patrão, que saudoso.
Ao chegar a este momento, tenho os olhos embaciados. Como foi, crente, como foi, que ele tinha adivinhado? Pois, no dia, na hora justa, ali uma festa sedava. A casa, cheia de gente, chiquetichique, para um batizado: o de filha do Magrinho, doutor!
Sem temer leis, nem flauteio, por ali entramos, de rajada. Nem ninguém para impedimento — criados, pessoas, mordomado. Com honra. Se festava! Com surpresas! A família, à reunida, se assombrava gravemente, de ver o velho rompendo — em formas de mal-ressuscitado; e nós, atrás, nesse estado. Aquela gente, da assemblança, no estatelo, no estremunho. Demais. — O que haviam: de agora, certos sustos em remorsos. E nós, empregando os olhos, por eles. O instante, em tento. A outra instantaneação. Mas, então, foi que de repente, no fechar do aberto, descomunal. O velho nosso, sozinho, alto, nos silêncios, bramou — dlâo! — ergueu os grandes braços: — "Eu pido a palavra...”
E vai. Que o de bem se crer? Deveras, que era um pasmar. Todos, em roda de em grande roda, aparvoados mais, consentiram, já se vê, e o velho, meu patrão para sempre, primeiro tossiu: bruba! — e se saiu, foi por aí embora afora, sincero de nada se entender, mas a voz portentosamente, sem paradas nem definhezas, no ror e rolar das pedras. Era de se suspender a cabeça. Me dava os fortes vigores, de chorar.
Tive mais lágrimas. Todos, também; eu acho. Mais sentidos, mais calados. O velho, fogoso, falava e falava. Diz-se que, o que falou, eram baboseiras, nada, ideias já dissolvidas. O velho só se crescia. Supremo sendo, as barbas secas, os históricos dessa voz: e a cara daquele homem, que eu conhecia, que desconhecia. Até que parou, porque quis. Os parentes se abraçavam. Festejavam o recorte do velho, às quantas, já se vê. E nós, que atrás, que servidos, de abre-tragos, desempoeirados.
Porque o velho fez questão: só comia com todos os dele em volta, numa mesa, que esses seus cavaleiros éramos, de doida escolta, já se vê, de garfo e faca.
Mampamos.
E se bebeu, já se vê. Também o velho de tudo provou, tomou, manjou, manducou — de seus próprios queixos. Sorria definido para a gente, aprontando longes. Com alegrias.
Não houve demo. Não houve mortes.
Depois, ele parou em suspensão, sozinho em si, apartado mesmo de nós, parece que. Assaz assim encolhido, em pequenino e tão em claro: quieto como um copo vazio.
O caseiro Só Vincêncio não o ia ver, nunca mais, àdoidiva, nos escuros da fazenda. Aquele meu esmarte patrão, com seu trato excelentriste — Iô-João-de-Barros-Diniz-Robertes.
Agora, podendo daqui para sempre se ir, com direito a seu inteiro sossego. Dei um soluço, cortado. Tarantão — então... Tarantão... Aquilo é que era!

- João Guimarães Rosa, no livro "Primeiras estórias". Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008.
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Ao acaso (3 de julho de 1864) - Machado de Assis

© Max Scholz
Ao Acaso (Crônicas da Semana)

3 DE JULHO DE 1864.

Um jornal desta Corte deu, há dias, aos seus leitores uma notícia tão grave quão sucinta. É nada menos que a predição de uma catástrofe universal.

Diz a folha que o professor Newmager, de Melbourne, prediz que em 1865 um cometa passará tão próximo à terra, que esta corre sérios riscos de perecer.

Renovam-se, pois, os sustos causados pela profecia do cometa 13 de junho, sustos que, por felicidade nossa, não foram confirmados pela realidade.

A terra, que tem escapado a tantos cometas — aos celestes, como o de Carlos V - aos terrestres, como o rei dos Hunos — aos marinhos, como os piratas normandos — a terra acha-se de novo ameaçada de ser absorvida por um dos ferozes judeus errantes do espaço.

O vulgo, que não entra na apreciação científica das probabilidades de tais catástrofes, estremece ouvindo esta noticia, reza uma Ave-Maria e trata de preparar a alma para o trânsito solene.

Também eu, apesar de já descrer até dos cometas, não pude ler a frio a notícia deste próximo cataclisma, e fiquei dominado por um sentimento de tristeza e desânimo.

Pois que! — disse eu comigo — dar-se-á caso que o Criador não esteja contente com os homens? Logo, é certo que somos grandemente velhacos, imensamente egoístas, profundamente hipócritas, tristemente ridículos. Logo, é certo que esta comédia que representamos cá em baixo tem desagradado à divindade, e a divindade, usando do princípio de Boileau, lança mão de uma pateada solene e estrondosa?

Estávamos tão contentes, tão tranqüilos, tão felizes, — iludíamo-nos uns aos outros com tanta graça e tanto talento, — abríamos cada vez mais o fosso que separa as idéias e os fatos, os nomes e as coisas, — fazíamos da Providência a capa das nossas velhacarias, — adorávamos o talento sem moralidade e deixávamos morrer de fome a moralidade sem talento, — dávamos à vaidade o nome de um justo orgulho, — usávamos o nome de cristãos e levávamos ao juiz de paz o primeiro que nos injuriasse, — dissolvíamos a justiça e o direito para aplicá-los em doses diversas às nossas conveniências, — fazíamos tudo isto, mansa e pacificamente, com a mira nos aplausos finais, e eis que se anuncia uma interrupção do espetáculo com a presença de um Átila cabeludo!

A ser exata a profecia do professor Newmager, percamos as ilusões e estendamos as mãos à palmatória. Fomos mais longe do que nos era lícito, e agravamos as coisas com a mania de dar nomes eufônicos e bonitos às nossas maldades e aos nossos vícios.

Compreende-se que esta notícia, apanhado-nos de supetão, nos deixe profundamente abalados.

Ainda se a profecia fosse para daqui a 20 ou 30 anos, então sim, ira o caso diverso. Se nos fosse impossível arrepiar carreira, procederíamos de modo a conjurar o mal, isto é: — os hipócritas, sem despir dos ombros a capa mentirosa, ensinariam contudo aos filhos que é uma coisa imoral e ridícula fascinar as consciências com virtudes ilusórias e qualidades negativas; os velhacos, continuando a lançar poeira nos olhos dos outros menos velhacos, diriam, todavia, aos filhos que nada dá maior glória ao homem do que a consciência da sua integridade moral; os egoístas, sem abandonar o culto da própria individualidade, aconselhariam contudo aos filhos a observância desta virtude cristã, que é o resumo e a base de todas as virtudes: amemos a nosso próximo; os vaidosos, os intrigantes, os ingratos, e assim por diante.

Que resultava desta tática? É que no prazo fixado aparecia o cometa, lançava os olhos cá para baixo, e vendo no mundo um ensaio de paraíso, tornava a enrolar a cauda e ia passear.

Mas, daqui a um ano, daqui a poucos meses, como escapar ao choque, como evitar o cataclisma, anunciado pelo professor Newmager?

É verdade que o professor Newmager deixa um lugar à esperança e acrescenta que, se não houver cataclismo, haverá uma coisa inteiramente nova e única desde a criação do mundo. Durante três vezes 24 horas não teremos noites, estando a atmosfera banhada por uma luz difusa mais brilhante que os raios do sol.

É o que se chama arriscar tudo para tudo ganhar ou tudo perder — ou morte violenta e universal, ou um dia de 72 horas, mais claro que os dias ordinários.

Diante de tais predições já me lembrei de que em todo este negócio talvez não haja outro cometa senão o próprio professor Newmager, cometa que aparece no céu da curiosidade pública, querendo tudo abalar e sacudir com a longa cauda da sua ciência astronômica. Varri esta idéia do espírito, por ver que esta é a segunda predição recente do mesmo gênero, e que a ciência popular tem um provérbio para estes casos: três vezes cadeia, sinal de forca.

Se escaparmos ao cataclismo ficaremos livres por algum tempo, e então naturalmente esquecidos dos cometas vingadores, prosseguiremos na comédia universal, sem coros nem intervalos, assistindo ao mesmo tempo às comédias parciais e políticas, à comédia dinamarquesa, à comédia polaca, à comédia peruana, à comédia francesa, etc., etc. Basta lançar os olhos a qualquer ponto da carta geográfica para achar com que divertir o tempo.

A propósito de carta geográfica, julgo que se deveria mandar uma de presente aos redatores do Siècle, folha que se publica em Paris.

Eis o que diz aquela folha em data de 15 de maio:  “A terrível tragédia de Santiago quase se renovou ultimamente em Montevidéu, no Brasil. Durante a semana santa, etc.”.

Não podendo supor nestas palavras uma insinuação de anexação do território oriental ao brasileiro, inclino-me a crer antes que o ilustrado noticiarista do Siècle conhece tanto a geografia da América como os leitores conhecem a geografia da lua.

Neste caso, uma carta geográfica será um presente de grande valor e digno de ser apreciado pela redação do Siècle.

Se em coisas destas que, por mui come-sinhás, todos devem saber, se escreve na Europa tanta barbaridade, o que não sai de falso e de imaginoso quando entram lá na apreciação da vida íntima dos povos desta banda?

Isto veio como “a propósito”, e eu não posso terminar a parte relativa às surpresas da semana, sem noticiar outra, muito de passagem.

Retirou-se a fragata “Forte”, de gloriosa memória, e veio substituí-la na estação da América do Sul a nau a vapor “Bombay” — uma adiçãozinha de força. Nisto é que está a surpresa, e em outra circunstância mais veio no  “Bombay” o almirante Elliot, casado com uma irmã de Lord John Russell, e acha-se com sua esposa a bordo da nau.

Oh!

É o caso de fazer uma pequena correção ao grande cômico: “Que vient-elle faire dans cette galère?”

Deve supor-se que o almirante Elliot é um íntimo do Lord John Russell, um eco fiel das suas intenções e dos seus desejos na qualidade de cunhado do ilustre estadista. Ora, esta última circunstância provará “anguis in herba”, ou reproduz simplesmente o passo da epopéia em que a deusa de Cípria faz abrandar, com o gesto gracioso e soberano, as iras dos deuses reunidos?

Esperemos os resultados das negociações pendentes; e vamos fundando a nossa verdadeira independência e soberania.

Foi no dia de ontem que a Bahia festejou a sua independência, naturalmente como de costume, com ardor e entusiasmo.

Também ontem tivemos por cá a nossa festa, festa mais particular, mas de grande alcance, — a festa da inauguração de uma sociedade literária.

É de grande alcance, porque todos estes movimentos, todas essas manifestações da mocidade inteligente e estudiosa, são garantias de futuro e trazem à geração presente a esperança de que a grandeza deste país não será uma utopia vã.

A sociedade a que me refiro é o Instituto dos Bacharéis em Letras; efetuou-se a festa em uma das salas do colégio de D. Pedro II. À hora em que escrevo, nada sei ainda do que se passou; mas estou certo de que foi uma festa bonita; entre os nomes dos associados há muitos de cujo valor tenho as melhores notícias, e que darão ao Instituto um impulso poderoso e uma iniciativa fecunda.

Tenho agora mesmo diante dos olhos um exemplar da  “Revista Mensal dos Ensaios Literários”. Ensaios Literários é a denominação de uma sociedade brasileira de jovens inteligentes e laboriosos, filhos de si, reunidos há mais de dois anos, com uma perseverança e uma energia dignas de elogio.

Que faz esta sociedade? Discute, estuda, escreve, funda aulas de história, de geografia, de línguas, enfim, publica mensalmente os trabalhos dos seus membros. É uma congregação de vocações legítimas, para o fim de se ajudarem, de se esclarecerem, de se desenvolverem, de realizarem a sua educação intelectual.

Toda a animação é pouca para as jovens inteligências que estréiam deste modo. Se erram às vezes, indique-se-lhes o caminho, mas não se deixe de aplaudir-lhes tamanha perseverança e modéstia tão sincera.

Creio que já tive ocasião de fazer um cômputo das diversões e festas que se prometem ao Rio de Janeiro. Como a nossa capital nem sempre conta destas felicidades, vamos esfregando as mãos e agradecendo a fartura que se nos dá.

 “No hay miel sin hiel”, dizem os espanhóis. A chegada de Emília das Neves coincidiu com a retirada de Gabriela da Cunha, para S. Paulo. Foi na noite de quinta-feira que esta eminente artista, a instâncias, segundo se anunciou, da sua ilustre irmã de arte, representou nesta corte pela última vez.

O teatro escolhido foi o de S. Januário e a peça foi a comédia de V. Sardou,  “Os Íntimos”.

O público sabe com que distinção, com que verdade, com que arte, Gabriela da Cunha desempenha o papel de Cecília naquela comédia. Desde os primeiros sintomas de um amor, que não nasce de súbito que resvala devagar na doce intimidade da conversa e do passeio, até ao lance terrível em que, na luta da paixão e do dever, o dever triunfa e a mulher salva-se roçando pelas arestas do abismo — toda esta escala de sentimentos — amor, arrependimento, ódio do amante, desprezo por si — tudo isto é reproduzido de modo a arrancar da platéia aplausos entusiásticos.

A noite de quinta-feira foi para Gabriela da Cunha uma das suas mais felizes e gloriosas noites, e o público, aplaudindo-a calorosamente, fez plena justiça a um talento, tão celebrado quão verdadeiro.

Emília das Neves confundiu os seus aplausos com os do público, e tal foi a tocante despedida de Gabriela da Cunha.

À exceção de dois ou três artistas, o pessoal da última representação dos “Íntimos” foi o mesmo das primeiras representações no antigo Ateneu Dramático. Todos, porém, fizeram convergir os seus esforços para que aquela representação não desmerecesse das anteriores; pede a justiça que se mencione o bom êxito desses esforços e o reconhecimento caloroso do público.

E a justiça pede ainda que se faça menção de outro artista, tão aplaudido sempre no papel que lhe coube, e para quem concorria igualmente a circunstancia de representar em despedida. Foi o Sr. Lopes Cardoso, no papel de Tolosan. Tenho manifestado mais de uma vez a minha opinião sobre este artista, ainda novo, mas dotado de talento e incontestável aptidão. O papel de Tolosan é dos seus melhores e mais brilhantes papéis. Dizer isto é fazer-lhe o melhor elogio, porque desempenhar Tolosan é empregar mil qualidades de artista, das mais difíceis e das mais raras.

Não vejo anunciada nenhuma outra novidade de teatro, a não ser “Os Ourives”, de Porto-Alegre, ainda em ensaios no teatro de S. Januário; e não é com essa comédia portuguesa em 3 atos, que se representa hoje, no Ginásio.

Falarei domingo a este respeito com os meus leitores.

Já tinha lançado no papel as minhas iniciais, mas sou obrigado a incluir ainda algumas linhas no folhetim.

“— Dize aos teus leitores, escreve-me agora um amigo, que, se querem ver um demoninho louro, — uma figura leve, esbelta, graciosa, uma cabeça meio feminina, meio angélica, uns olhos vivos, — um nariz como o de Safo, — uma boca amorosamente fresca, que parece ter sido formada por duas canções de Ovídio, — enfim a graça parisiense, “toute purê”, vão.........”                         

Adivinhem os meus leitores aonde quer o meu amigo que eu os mande ver este idílio?  “.... ao Alcazar: é Mlle. Aimée”.

Vejam os leitores até que ponto tem razão o comunicante. Lembro-lhes, ao concluir, que não percam da lembrança a terrível profecia do professor Newmager, de Melbourne.


- Machado de Assis, em "Ao Acaso (Crônicas da Semana)". Publicado originalmente no Diário do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 3 de julho de 1864.| Obra Completa, Machado de Assis, Rio de Janeiro: Edições W. M. Jackson,1937.
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Veja mais sobre Machado de Assis:

Menina de vermelho a caminho da Lua - Marina Colasanti


© Gaëlle Boissonnard
Menina de vermelho a caminho da Lua


Esta é uma história que não quero contar, uma pequena história sem fatos, espessa como um mênstruo, que não pretendo assumir. Tentei livrar-me dela, afundá-la e ao fastio que me causa. Não consegui. Desnecessária como é, ainda assim insiste em existir. Foi por isso que botei um anúncio no jornal. Dizia: "Procura-se narrador. Exigem-se modéstia e prazer descritivo. Pagamento a combinar. Procurar... endereço... etcétera".
Só um apresentou-se. Teria preferido, me caberia melhor, fosse mulher. Mas não tive escolha, fiquei com ele. Homem e um pouco inexperiente, me vi obrigada a insistir na minha vontade, concisão de estilo e docilidade nos ramos. E a vesti-lo com nova roupagem. É assim, pois, de saia rosa e lenço nos cabelos, que o apresento: mãe de duas filhas pequenas que pouco irão agir, levando-as para brincar num parquinho de diversões, sábado à tarde, naquela exata tarde, naquele exato momento em que a história quer acontecer, e onde ele se torna, por contrato e escolha, seu responsável.
O parque, instruo meu sócio, é pequeno, nem se poderia a rigor chamá-lo de diversões, porque lhe faltam cores e aquela mínima alegria necessária ao divertir. Tem poucos jogos. Um carrossel movido a hélice, espécie de ventilador gigante instalado ao alto em armação precária. E a grande bolha de plástico. Não quero que descreva como a luminosidade batia, se de chapa ou de lado, e não precisa perder-se em considerações românticas sobre a decadência dos parques. Quero apenas que dê a entender, através da hélice, talvez, a pobreza algo sórdida do lugar. E, por favor, não comece com referências temporais.
"Pena ter vindo de sandálias de salto alto, pensei sentindo a poeira infiltrar-se entre os dedos, viscosa pasta de suor sobre a sola. E inutilmente sacudi o pé. As meninas corriam adiante, indecisas entre os brinquedos, prontas para pedir um e outro, excitadas com a possibilidade de ganhar mais do que o previsto. Não havia muito na verdade. No espaço espremido entre dois muros, terreno baldio que aos cantos abrigava capim e cheiro de urina, girava um carrossel sem cavalos, tocando a hélice assentos de caixote. Canoas, pêndulo de correntes, cortavam o ar em foice. No stand de tiro, os alvos picotados lembravam fome de ratos. E, ao redor de um cercado, caniços com barbante esperavam pescadores da sorte para fisgar chaveiros e canecas de plástico. Ao fundo, porém, a grande bolha inflada era atração que valia seus três reais."
Não valorize demais a bolha. Ela é velha e suja como tudo mais ali, visivelmente comprada já gasta, de outro parque maior. E cuidado com os lugares-comuns, "cortar o ar" não é bom, você poderia ter usado uma forma mais nova. Nem precisa de tanta delicadeza. E melhor dizer mijo do que urina, sobretudo nesta história. Mas vamos em frente. Você, a mãe, quer pagar para que as filhas possam entrar na bolha e pular, é para isso que a bolha serve. Procura, não vê bilheteria, chama, bate palmas. Vem um homem. Eu sei que você gostaria de descrevê-lo, um velho, ou um homem assim e assado, de olhar meio enviesado, e baixinho. Mas eu não quero. Por enquanto permito apenas que diga que tinha as calças amarradas de corda. E o quanto basta.
"Branca e amarela, com visores transparentes. Ou sujamente branca, com remendos. Assim seria a superfície lunar, imenso colchão inflado onde a perna afunda, debaixo da redoma de uma bolha. Porque assim estava escrito: 'Pise na Lua por R$ 3,00'. E eu, querendo pagar a viagem das minhas duas astronautas, procurei a bilheteria, falso quiosque em meio àquele nada, e não encontrando ninguém voltei tentando atrair a atenção pela simples presença. Havia tão pouca gente no parque. Pensei em chamar, bater palmas, mas constrangida com a idéia do meu próprio alarido fiquei ali parada junto às meninas, olhando em volta com ar que pretendia autoritário, mas que sabia apenas desamparado. Seria do parque o homem que vinha sem me olhar, mais preocupado em segurar as calças?"
Não sei por que você omitiu o detalhe da corda. É forte, marca bem a personagem. Esse seu "segurar as calças" diz pouco, dilui. E não se alongue tanto. O leitor quer clima, pressão. Esqueça as descrições. Vamos, agora ponha suas filhas na bolha.
"Cabeça enviesada como um ovo no ninho dos ombros, recebeu meu dinheiro sem sorrir. E empurrando um plástico..." Pára, pára. Não quero ele sério. De jeito nenhum. Troque isso. E fundamental. O homem sorri, ri estranhamente o tempo todo, de uma forma adulcorada. E diz coisas que você não entende. Tem um ar maligno, matreiro, ou talvez servil, escolha você a palavra melhor, mas sorri sempre, com falsa bonomia. "Cabeça enviesada como um ovo no ninho dos ombros, estendeu a mão sorrindo em busca do dinheiro. Levantou um plástico mais solto, branca língua sobreposta, e forçando com os braços abriu o talho da bolha."
"Bufido, siroco pesado de suor. Este era o hálito da Lua. Escapava pelos lábios exangues da fenda, encobria em uivo as palavras que o homem dizia gesticulando, expondo a boca, nariz encrespado. Queria as horas? Apontei para o relógio. E estava aos berros tentando responder naquele corredor de vento, quando a mão, seca, agarrou de repente o braço da minha menina." Muito bem, gostei dessa mão introduzindo o desejo. Só não sei o que você vai fazer com ela, o que ela pretende. Resolva, mas lembre-se de que suas filhas não são personagens.
"Menina que já entrava. E puxando-a de volta deslizou para a perna, fechou-se no joelho, a outra mão já pronta em garra alcançando o tornozelo. "É para tirar os sapatos - ouvi enfim enquanto ele desafivelava as sandálias, e empurrando a pequena para dentro vedava talho e vento - só pode entrar descalça, senão rasga o plástico."
Ótimo, as duas estão afinal brincando, isoladas na bolha, seguras. Pode deixá-las lá, por enquanto. Não vamos precisar delas. Mas, atenção, você não tinha reparado, a teu lado, olhando pelo visor as tuas filhas que pulam, está uma menina. De vermelho, um tom carmim, vestida com uma malha, descalça. E dentes cariados. Tem 10 anos. Cuidado com essa idade, porque o olhar dela tem mais. Pequenos seios. Ela quer entrar na bolha. Quer muito. E não tem dinheiro. Mas quer, e vai ter que pagar de outro jeito. Ela sabe disso. Você, não.
"Rolam, afundam rindo as duas na pouca gravidade do colchão ondeante, braços abertos, passos embriagados, gritos presos em curva na redoma. Mas não sou só eu, mãos espalmadas sobre o visor fosco, que acompanho a viagem das meninas. A meu lado ela também olha gulosa."
"Já estava no parque quando cheguei, figurinha vermelha brincando com outras crianças nas canoas volantes. Dez anos talvez, de longe mais. O carmim do batom pesa nos lábios, mas os seios ainda não são seios, e a cintura no alto espera crescimentos. Por que tem uma máscara vermelha levantada sobre a testa, se o carnaval já passou? A tela encerada, recortada em folhas, esmaga mechas úmidas, e como uma borboleta pousada ao acaso se contrapõe ao rasgado dos olhos. Não parece sentir frio, exposta na malha curta. Olha levantada sobre a ponta dos pés, o corpo todo encostado à superfície curva, as coxas nuas coladas contra a bolha, enquanto a boca se abre amolecida de vontade."
Está ali ao teu lado, e vocês duas não têm nada a ver uma com a outra. Mas é uma criança. Não esqueça disso, ela vai ser criança o tempo todo, apesar do que vier a acontecer. E como criança se aproxima da mãe que você é, procura apoio, ou quem sabe, uma possibilidade de conseguir dinheiro. "Uma menina, como as minhas. Que me olha e sorri corada, ou maquilada? dizendo pequenas coisas sem peso, coisas a que respondo mais com a atenção do que com palavras, porque não temos muito a nos dizer. Uma menina que não é minha, e que logo abandono à carência de assunto, caladas as duas, prolongando o sorriso e desviando aos poucos a cabeça, fingindo que já não nos olhamos mais." Você não a olha diretamente para não se envolver, para não ter que incluí-la no teu sábado, elemento estranho, fora das previsões. Mas também não a larga. Debruçada sobre a esquina do teu próprio olho, sorrateira e voraz, você a acompanha sorvendo aos poucos, em lento entendimento, a metamorfose sem saltos em que um novo jogo se inicia.
Comece a movimentá-la. Afaste-a, traga-a de volta. Não a deixe ficar parada. Menina, ela vai ao espaço do parque, ao encontro dos brinquedos. Mulher, vem para junto do seu desejo, forjando a chave que irá satisfazê-lo.
"Eu a vejo, porém, quando esquecida da bolha corre breve. Vai ao carrossel, que gira sem crianças. E não podendo entrar o acompanha por fora, mão encostada apenas no rendado da cerca, rosto erguido em perfil. Os pés em trote, volteia lentamente ao compasso gritante, cavalinho mais gracioso do que aqueles enfeitados de espelhos, que o carrossel já teve em dias melhores. Mas não demora muito. Seu corpo tem urgências, tempos mais rápidos que o um-dois-três da valsa. Corre, debanda, sacode a leve crina. E, olhando a Lua de longe, se abaixa, cata uma tala de pau esquecida e a atira com violência contra o muro." Isso, ela está mordendo o freio. O corpo dela relincha, se empina, se estica. Ela galopa ao redor, preparando-se. E logo, abaixada a cabeça, manso o passo, vem buscar sua grama mais verde. "E a pressinto de volta, trazida devagar pelo desejo, chegando-se em rodeios, como se por acaso. Pôs o rosto mais manso, o olhar lavado, fez infantil o queixo."
"Vem ao visor primeiro. Como antes, levanta o corpo sobre a curva dos pés, e só agora percebo que não é necessário, baixo o olho transparente que devassa o interior da bolha. Mas encostada assim, tão debruçada, não se interessa pelo jogo infantil das duas meninas. Olha através, de lado, para o homem." É a hora da primeira tentativa. Ela não tem muita esperança de conseguir, mas vai tentar. E a maneira de testar o velho, de dizer eu quero. Invente um diálogo. Breve, porque não é com palavras que eles se entendem. Mas o quanto baste para marcar o primeiro toque. "E logo, lenta, fingindo indiferença, enroscando nas pernas cada avanço, se aproxima da entrada. A mão se esgueira por baixo da língua de plástico." Se esgueira não, se enfia, se mete, se introduz. "A mão se enfia por baixo da língua de plástico, a coxa avança devagar trazendo os quadris, o corpo todo força disfarçado as beiras do talho, tentativa de varar."
"- Não pode - diz o homem em voz baixa, sem sair do lugar. E ela se sobressalta estendendo-lhe um riso."
"- Só no próximo giro - diz ele, e mostra dentes. - Depois das outras duas que estão lá dentro."
Tudo é muito tênue ainda, muito impreciso. E difícil ver aquilo que, por proibido, se esconde. Mas aos poucos, seduzida, você vê. Na maneira que eles têm de quase não se olharem, no jeito espiralado dela, você vê. Seja bem claro agora. Não é hora de ficar rebordando estilo. A coisa é simples: um homem e uma menina enovelando um desejo. Empine os dois, dê linha a eles. Têm bem com que se enrolar. Mas trabalhe mais a menina. Quero que seja ela a primeira, a mais forte, a doce aranha.
"Vem a menina em passos lentos, fiando ao redor do homem a seda com que prenderá seu olhar. Pára, estica uma perna, arqueia a linha descalça do pé, e com unhas de esmalte traça espirais na poeira do chão. Fincada como um compasso, a outra perna é eixo do corpo macio. Não o encara. Ajeita a máscara com dedos em ponta, afofa cachos inexistentes. Depois, num repente, baixa a viseira rubra sobre o rosto, e entre frestas conduz o brilho verde dos olhos até cravar o alvo, atenção do homem que a ela se ata. É agora, bem segura a ponta da meada, que ela desce o queixo no peito marcando de leve um sorriso, e lentamente começa a girar." Não, não era você que eu queria para contar esta história. Quisesse assim tão delicada, eu mesma escrevia. Procurei, porque precisava de alguém que quisesse fermentar esterco, adubar um fato vil. E vem você aí com essa tapeçaria medieval, se esgueirando entre palavras, mascarando com imagens. E vergonha? E incompetência? O que é isso que você tem? Um narrador profissional com medo de uma menina. Mas a menina está seduzindo um velho porque quer pisar na Lua. Vê se põe isso na tua cabeça. E se passa isso para o texto. "Firme, desenhando seu próprio movimento em vinco fundo no chão, roda sobre si mesma e fecha o círculo. Até dar-lhe as costas."
"E de costas, empinados quadris, que espera a gula dele depositar-se em visgo sobre as pernas. Não tem pressa. Chupa o dedo, finge roer as unhas, quati de dentinhos cariados. Deixa que ele lhe estude bem a pele, que afunde o olhar na concha rosa, reverso do joelho, que suba denso, palmilhando as coxas, que se embrenhe um instante. Só então, súbita e recatada, puxa para baixo o cós vermelho da malha, em defesa de pudores. E levantando a cabeça me sorri, rostinho aberto."
Pronto, agora você pode ficar com vergonha. A mãe está vendo, e não faz nada. Poderia chamar a menina, conversar, pagar a entrada dela. Mas isso seria reconhecer que sabe o que está se passando, que o tempo todo, enquanto ela se jogava no perigo, você desenhava atenta aos detalhes, afiava a ponta do seu lápis na linha dos olhos, na pose do pé, mais interessada em roubar o fato do que em evitá-lo. Agora ela sorri para você, bem criança. Não quer te agradar. Quer teu álibi. Sorrindo de volta você está assinando seu atestado de inocência, afirmando que sim, ela é uma criança igual às outras, uma boa menina que merece teu carinho. E nada do que você viu aconteceu. E você, sem forças, sorri. "Uma menina como as minhas, brincando sábado à tarde no parque de diversões. Uma menina de coxas gordas que pede o meu sorriso. É isso que estou vendo, só isso. Não há por que esta secura na boca, este anotar." Ela não está com secura. Está úmida, seivando secreta ao sol do parque, presa com o homem na teia viscosa. Sua nas axilas. Ponha isso, esta palavra axilas, não, melhor, sovacos, que você odeia ainda mais, que acha tão óbvia. Eu sei que você não quer escrever como eu mando, que já se acha dono da história. Mas o fato, quem tem o fato sou eu. E sem mim você não tem nada para contar, sem mim, você não existe. "Este anotar desenhado de máscaras e pés. Nada, não há nada sobre o que fantasiar. Nenhum gesto concreto. Só uma malha vermelha esticada de leve sobre seios, e duas flores de pano amarradas ao pulso com uma fita. Pulso que o homem agora segura, sem forçar, firme apenas, debruçando-se sobre o ouvido encoberto pelas mechas. E que ela lhe entrega, dócil por momentos, logo puxando o braço e o corpo em riso de recusa, sacudindo do ouvido as suas palavras, mas trazendo no gesto a mão escura que, rápida, se encaixa na curva da cintura."
Leve ela embora, não a deixe ficar muito tempo junto dele. E por etapas que se insinua, avançando um pouco mais a cada vez, quase não concedendo, mas deixando crer. Ele não. Fica parado. E o centro, o poder. Não se move, não se apressa. Sabe que ela vai voltar até conseguir o que quer. E tem seu preço.
"Um momento, e ela já se afasta dançante, coçando na nuca o cabelo louro, vincado pela auréola do elástico. No stand de tiro, o único cliente encostou a carabina, e concentra sua atenção no alvo moreno da moça do parque, encarregada das armas. É para lá que ela vai. Eu a olho quando se aproxima, e agatanhada se dirige ao rapaz. Não sei o que se dizem. Vejo que o rapaz a segura debaixo dos braços, levantando-a devagar por trás. Até que ela, espremida entre o corpo dele e o balcão, alcance a carabina, e encostando-a no ombro possa dar seu tiro."
"Percebe o homem? Não parece. Sem virar a cabeça, sem procurá-la no olhar, move seus passos achatados recebendo dinheiro dos pais que aos poucos chegam, desafivela sandálias sorrindo, bondoso porteiro daquela Lua que ela quer acima de todos os brinquedos do parque, e que, ele sabe, a trará de volta."
"De volta vem ela, cortando em diagonal a distância. Traz na corrida outra menina, que a segue, que a segura um instante e logo foge, perseguida também. Não vão longe. No espaço junto à bolha, que agora com pais e crianças ficou subitamente apertado, se procuram em voltas, se oferecem torcendo o corpo para escapar à mão que avança, se tocam entre gritos, tentando vencer na garantia do pique. E esbarram, e tropeçam tumultuando a ordem da pequena fila já formada, até que o homem abandona seu posto junto à entrada, e exercendo publicamente seu papel de bom guardião expulsa a brincadeira."
"Afasta-se a outra menina, enquanto ela, serena e quieta, entra, como se de direito, entre as crianças descalças que, bilhete na mão, esperam bem-comportadas a vez de penetrar no cosmos. Não pede, não olha para ele. Balança de leve a cabeça acompanhando a música do parque. Depois se aquieta, a máscara vermelha já levantada em coroa. E devagar, chamando por ele em silencioso silvo, o brilho da língua descola os lábios, hesita no canto, e segue acariciante lambendo restos de batom, passando, forçando, insistindo, sugando em seu próprio sumo escamas de carmim."
"Esgotou-se o tempo lunar das minhas meninas, que paridas entre ventos pelo talho vêm a mim afogueadas. Avança ordenada a fila. Entre as outras crianças que, cabeça à frente, mergulham no bafo quente, o homem deixará enfim que ela entre. Mas será a última, retida até o fim, para que ele possa meter o braço na fenda fingindo ajuda, e alcançá-la entre plásticos. Depois deixará que pule seus vinte minutos no macio da bolha, grito afogado, sem sequer olhar no visor."
Agora saia você do parque. Mãe de dever cumprido, a caminho de casa, com as filhas pela mão. A menina vai sozinha. Para ela também o sábado acabou. Voltará no domingo, para colher mais onde plantou.
Acabou, se eu quiser. Agüentei até aqui calado, engolindo teus desaforos. Mas o fim chegou, dono da história. E não é mais uma história, é um conto. O que é que você tinha? Um fato? Mas fato todo mundo tem, acontece a toda hora na cara da gente. O que você não tem é voz para contar. E isso quem tem sou eu. Está aí teu fato, como você viu ou inventou. Mas agora é meu conto, história das minhas palavras, que eu acabo como quiser.
"É tarde quando saio, levando minhas filhas pela mão. Ela fica. Lá longe, na canoa que sobe esticando correntes, sua figura vermelha sangra o ar."

— Marina Colasanti, no livro "Um espinho de marfim e outras histórias" . Porto Alegre: L&PM, 1999